Autor(a):

Carmo Marques

Escrever

Às vezes sinto saudades de escrever. Escrever mesmo. Pegar numa folha em branco e enchê-la de palavras, apenas pelo simples prazer de o fazer. É uma cerimónia a que me entrego com formalidade solene, começando pelo ritual de preparação dos materiais. Abro o compartimento da minha escrivaninha, onde reservo, para estes assomos recordatórios, um tinteiro do qual retiro a quantidade de líquido necessária para encher o reservatório de uma caneta de tinta permanente. Dias há em que vou ainda mais longe e ponho-me a usar uma caneta de aparo, afinal, o meu primeiro instrumento de escrita. Estendo a folha na minha frente e nela registo, com lento desvelo caligráfico, a primeira palavra que, sem reflexão ou escrutínio, se me declare na ponta dos dedos. De imediato, faço-a seguir de outras que, descuidadas de nexo, vão caindo livres no papel à medida que se desprendem de um qualquer recanto de mim. Por vezes, sem aviso, algumas aglutinam-se a compor uma ideia que se poderá desenvolver ou perder. Pouco interessa. Nestes momentos, o objetivo é fruir do exercício de escrita manual a que hoje pouco recorro, a não ser para rabiscar uma breve nota num qualquer pedaço de papel, geralmente um talão de caixa perdido por entre as várias coisas — absolutamente imprescindíveis — que transporto nas minhas bolsas. 

E afinal, quanto esforço precisei para dominar a arte de escrever! Bem me recordo da temível vareta de ferro com que a professora da primeira classe nos convencia a desenhar a letra redondinha, nem demasiado pequena nem demasiado grada. Havia de caber, à justa, no espaço entre os traços paralelos do, denominado, caderno de duas linhas, fabricado especialmente para esse fim. O corpo de cada letra havia de ficar ali contido. Apenas exceções como a perninha do ‘p’ ou o anzol do ‘g’ podiam descer abaixo da linha, e os pescoços do ‘d’ ou do ’t’ subir acima delas. Éramos repreendidas por fazermos abóboras, se tendíamos para letras grandes; ou formigas, se as desenhávamos pequenas. Para quem não se concentrava o suficiente, ou, por se deixar atordoar pelo medo, persistia no erro, vinha o castigo da vareta, aplicado nas cabeças dos ossos do metacarpo da mão com que escrevíamos. Não aprendemos então o nome dos ossinhos onde recebíamos o castigo — chamavam-lhe os canhotos —, mas aprendemos a dor que neles ficava. 

Era assim na minha escola primária. Aprendíamos a escrever à moda antiga, pelo menos tão antiga quanto a era dos aparos metálicos, dos tinteiros de porcelana — que cada uma tinha na sua carteira —, dos mata-borrões e dos dedos e roupa manchados de tinta azul ou preta. A vermelha estava reservada às correções das professoras e a verde excluída, porque era falta de educação usá-la, diziam-nos. Quando chegávamos à quarta-classe tínhamos permissão para usar uma caneta de tinta permanente. Apreciei de tal forma o salto qualitativo, que ainda hoje cultivo um gosto especial por esse tipo de instrumento e será por isso que, quando me ataca a saudade de escrever à mão, não quero uma esferográfica, nem nenhum dos eficazes objetos de escrita que hoje existem no mercado. 

No ensino secundário, passei, como todos os outros, a usar as então modernas esferográficas: práticas, baratas e quase infalíveis. Esqueci a contenção e enchi páginas de letras-abóbora. De vez em quando, enchia-me de brios e escrevia um bocadinho seguindo as regras da primária, mas logo regressava à minha letra gorda que me parecia muitíssimo mais bonita. Depois, na faculdade, o ritmo do discurso dos docentes não tinha em consideração primores de grafia, e a minha passou a gatafunhos, temperados de arremessos estenográficos que só eu, e por vezes nem eu, entendia. Perdi o estilo e ganhei um calo no dedo médio. Para tornar apresentáveis os trabalhos a entregar aos professores, recorria a uma velha máquina de escrever, em cujo rígido teclado martelava as letras com pavor de me enganar, pois, qualquer falha poderia representar ter de redatilografar toda uma página, ou mais. Para um lapso menor, havia a borracha dura, em forma de lápis, que rasurava a tinta, mas, com desesperante frequência, levava também o papel, deixando um buraco onde antes estivera o erro.

Que conforto é hoje poder escrever no teclado macio de um computador que até nos aponta os erros de ortografia! Como é fácil corrigir um engano, mudar de ideias, reescrever um texto, mudar-lhe a forma e o conteúdo, quantas vezes a inspiração, a hesitação ou a urgência de dizer o deslumbramento, o amor ou a raiva o exigirem. Não trocaria esta ferramenta pela pena de outrora. Contudo, por brincadeira saudosista, deleita-me ver a dança revoluteada do seu bico, ao som do seu próprio roçagar sobre o papel, seguindo o ritmo do capricho das ideias em liberdade. 

 

Partilhe:
AUTOR(A)
Carmo Marques

Carmo Marques nasceu na Ilha da Madeira, onde reside. Formada em Filologia germânica, pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, dedicou a sua vida à absorvente tarefa de ensinar, deixando apenas uma parca fatia do seu tempo para a escrita. Foi coautora da versão portuguesa dos contos do escritor inglês Romesh Gunesekera, integrados na edição bilingue de The Spice Collector/O Colecionador de Especiarias, Ed. Funchal 500 anos, 2008. Ao longo dos anos, participou em várias revistas e coletâneas de poesia. Em 2014, na sequência de uma tese de mestrado na área da literatura medieval, publicou No Reino Aventuroso de Artur – Um olhar sobre Mulher medieval a partir de uma leitura de “A Demanda do Santo Graal”. Mantém, desde 2017, uma crónica no JM (Jornal da Madeira). Em 2021, como Carminho Barreto, publicou Da terra e da vida, uma coleção de poemas. No mesmo ano, o seu destino cruzou-se com “O prazer da escrita”, o que lhe permitiu integrar a coletânea Não Vão os Lobos Voltar, com o conto Não Há Quem Não Mereça Uma Flor, bem como participar nas várias edições da Revista Palavrar. Foi vencedora do Prémio literário João Augusto d’Ornelas -2021, com o conto Regresso a Casa. Em janeiro de 2022, publicou No Tempo das Cerejas, uma autobiografia ficcionada e em outubro, o livro de contos Quantas Vidas Tem um Gato. Ainda em 2022, foi-lhe atribuído o primeiro prémio no Concurso literário Francisco Álvares de Nóbrega, com o conto A Sombra do Poeta.

MAIS ARTIGOS