Autor(a):

Patrícia Lameida
Patrícia Lameida

Não demoro

Pediste: “Deixa-me ficar. Não me leves ao hospital”, tranquila, respiração curta e sibilante. Pegaste-me na mão e olhei as mãos cruzadas, enrugadas pelos anos que juntos passámos. Alianças baças, trocadas há tanto, relembram: na vida e na morte e fiz-te a vontade, desistindo. Afinal, é contigo que todas as coisas começam e acabam. Sem ti, não haverá mais.

Passámos os últimos dias como temos passado os últimos meses: um com o outro, um para o outro. Pouco nos interessa o que lá fora acontece. Os meninos estão longe, afundados neles mesmos e nas famílias construídas no caos, na babel em que o mundo se tornou. Não nos podem visitar e estamos em paz com isso. Ecrãs vão trazendo as gargalhadas das crianças que pouco recordam dos avós. Os avós somos tu e eu e estamos sozinhos, juntos, e juntos bastamo-nos. As rotinas preenchem-nos e a tua presença ilumina-as — estás comigo e isso chega-me.

Aos poucos, tornámo-nos mais calados, mas os nossos silêncios são repletos. Ter-te a meu lado aquece, olhar-te completa. Compreendemos. Percebi que te custavam pequenas tarefas. Perguntei, desvalorizaste. Tornou-se difícil vestir, tomar banho, comer, e hoje não saíste da cama. Não perguntei. Ainda deitada, inspiras, concentrada, lutando contra o aperto que te cinge o peito. Expiras com a mesma dificuldade e sorris. Nunca admitirás sofrimento, porque queres ficar. Sabes que, se te vir sofrer, não consigo. Então, lutas empenhada.

Preparo um caldo simples. Comes quase nada… “delicioso”, sussurras e forças um pouco mais, para minha satisfação. Fogem-me algumas lágrimas nas tuas costas. Sei que o nosso tempo está a findar, percebíamos que ia chegar. Somos tão afortunados! Cinco décadas de amor: romântico, sensual, partilhado com a prole e calmo, por fim. Ser em ti e tu em mim. E tivemos tanto!

Consigo ouvir o sopro fino que o ar traz ao abandonar-te, aos poucos.

Visto um pijama confortável e sento-me ao teu lado na cama. Abro um livro, finjo ler, sinto-te mexer e espreito. Pousas a cabeça no meu colo devagar, tarefa pesada, cansada. Exalas, chiando, com prazer que reconheço entre as rugas que adornam os olhos que me guiam pela vida. Não choro. Sentirias as lágrimas, tantas as que guardo emparedadas pelo pânico de te perder. Também tu sofres e não choras, não lamentas. Sinto-te aliviada na agonia física que te leva. Colocas a mão sobre a minha pele, o teu calor no meu peito. Quente ainda, apesar do gelo que te azula os lábios, essa fatalidade que se espalha desde o teu centro e que te leva. Prendo a tua mão com a minha, quero-te quente mais tempo. Quero-te mais tempo comigo…

A tua respiração é agora superficial, já não consegues lutar, e pouso o livro — não é altura para farsas. Procuro o teu olhar, que abres para me ver, por uma última vez. Murmuras, “amo-te”, entre suspiros. “Também te amo”, respondo, tão baixinho como tu. Sei que me ouves. Sei que me sentes. Palpito, acelerado sob a palma da tua mão, que seguro ainda por teimosia. Escorregas-me. Não respiras. E usas a pouca força que tens para aparentar paz, a paz que me queres dar.

Foste e não te quero largar. Posso chorar, mas não quero, não quero poder chorar. Quero-te aqui e já não estás. Contigo foram todas as razões. Contigo foram todas as cores.

Que mais resta fazer agora? Agora, espero. Não demoro.

Não demoro - Patrícia Lameida - ilustração
Partilhe:
AUTOR(A)
Patrícia Lameida
Patrícia Lameida

Patrícia Lameida cresceu entre livros, aventuras e novos mundos. Escreveu, desde cedo, poemas e pequenas histórias que esqueceu com o tempo. A vida divergiu do mundo das letras durante a sua formação e entrada no mercado de trabalho. Não tardou a procurar novamente esta paixão mantendo um blogue de crítica literária durante vários anos e escrevendo pequenos textos, alguns deles publicados. Retoma a escrita sob a tutela de Analita Alves dos Santos, sendo a sua participação na antologia «Não vão os lobos voltar» o primeiro passo desta aventura.

MAIS ARTIGOS