Autor(a):

Nuno Gonçalves
Nuno Gonçalves

Soldadinhos de papel

— Pum, pum! Aaaaahhh! E assim, uma vez mais, os valentes soldados portugueses derrotam os seus malvados inimigos.

— Joaquim, despacha-te! Já acabaste de arrumar o quarto ou precisas da ajuda do meu chinelo?

Ups.

— Estou quase a acabar, mãe.

Não está, não. Está tudo em grande desordem, mas não lhe contem, por favor. O que aconteceu foi que, quando ia arrumar os meus soldadinhos de papel na caixa de sapatos, eles começaram a lutar e eu tive de os ajudar a terminar a batalha. Os portugueses venceram, como sempre. É melhor arrumá-los separados, senão, quando voltar a abrir a caixa, vou encontrar os soldados inimigos todos destruídos.

— Quase, mãe — grito, para tentar mantê-la no piso de baixo. A ela e ao seu chinelo.

Um dia, eu também hei de ser um soldado. Um soldado verdadeiro, com uma arma e tudo. E ir para África lutar pelo país. E voltar para casa com muitas medalhas!

—  A descer, mãe.

Ela não responde, o que é estranho, porque normalmente diria “Já não era sem tempo”, ou “Vou já ver se está tudo em ordem.”

Sentado à mesa da sala, está o meu irmão. É uma grande surpresa para mim e atiro-me para os seus braços. Bem, eu sei que sou grande demais, já com sete anos, para me abraçar a ele, mas o meu irmão é quase um soldado de verdade, e eu já não o via há alguns meses, porque tem estado na recruta. E tinha saudades.

Ele abraça-me também, mesmo já sendo crescido o suficiente para fazer a barba.

— Já voltaste, Tone! Queres vir brincar comigo?

Ele não responde. Quando olho para a sua cara, reparo que está a chorar. Vocês não percebem, mas o meu irmão não chora. O meu irmão é muito forte e valente e nunca chora. Não sei o que lhe perguntar e olho para a minha mãe, que também está a chorar. Bom, mas a minha mãe farta-se de chorar. Basta eu rasgar umas calças para lhe encher os olhos de lágrimas.

O meu irmão lá consegue falar, finalmente.

— Vim despedir-me, Quim. Vou para a Guerra.

E diz “guerra” com a voz muito fraquinha, como se não quisesse ir, como se lhe custasse e tivesse medo.

Impossível. O meu irmão não tem medo de nada!

— Para a Guerra? Ei, Tone, vais ter uma arma verdadeira! Deixa-me ir contigo, leva-me na mochila. Prometo que como pouco. Prometo que vou ser valente e que-

Ele abraça-me com muita força e não consigo dizer mais nada. Depois, solta-me e abraça a minha mãe. Demora imenso tempo e começo a achar que ele vai perder a boleia para a Guerra.

Lá se conseguem soltar e ele sai de casa. Ficamos a vê-lo. Não olha para trás, até chegar à mota do primo Cino que, pela roupa, também deve ir para a Guerra com o meu irmão. O Cino também não olha para nós. Está só a fitar o chão, muito concentrado.

Estou muito feliz pelo Tone. Muito feliz, só não percebo porque também eu estou a chorar e alguma coisa me ficou entalada na garganta e não lhe consigo gritar nada enquanto aceno.

— Adeus, Tone, quando voltares vais ter muitas medalhas!

Era o que eu gostava de lhe ter dito, mas não digo nada.

Não sei bem o que faça com a minha mãe. Está na cozinha a cortar batatas com muita força, como se elas tivessem culpa. O mais prudente é deixá-la sossegada e ir para o meu quarto.

Volto a tirar os soldados da caixa de sapatos. Eu sei que acabei de os arrumar, mas eles devem estar impacientes para voltar a combater. Um deles salta logo para o chão. É um dos portugueses, o mais alto. Vou dar-lhe o nome do meu irmão. Mais nenhum tem nome, são só soldados, mas este será o Soldado Tone. O mais forte e valente de todos.

Os portugueses reúnem-se no chão, penso que estão a preparar o próximo ataque. Parecem um pouco distraídos, pois não se apercebem que, em cima da cama, os inimigos lhes preparam uma emboscada. Terão a vantagem da surpresa e da altitude. A minha mãe também me diz muitas vezes que eu tenho de subir na vida, porque de cima se vê melhor do que de baixo. Os soldados sabem.

Digo-vos que, desta vez, foi por pouco que os portugueses não foram completamente destruídos. Se não tivesse sido o Soldado Tone a aperceber-se da chegada dos inimigos, teria acabado muito mal. Felizmente, os portugueses voltaram a vencer.

Volto a arrumá-los. A minha mãe não grita por mim há bastante tempo e estou a ficar preocupado.

Encontro-a na cozinha, rodeada por batatas mal descascadas, a sangrar de uma das mãos.

Tenho sete anos, quase oito, por isso consigo resolver tudo. Embrulho a mão dela num pano e vou tentar acabar de descascar as batatas.

Depois, quando a consigo convencer a sentar-se à mesa comigo e a trincar qualquer coisa, decido que tenho mesmo de aprender a cozinhar, para não voltar a comer batatas cruas e insossas.

Ela pede-me para dormir com ela. Sou muito crescido para isso, mas soube-me bem. Não contem aos meus amigos, por favor.

***

Dois dias depois, um par de homens de fato preto bate à nossa porta. Dizem coisas muitas estranhas que eu ouço por detrás da minha mãe. Algo assim:

— O recruta António Joaquim está aqui?

Claro que não. Foi para a Guerra. Eles continuam:

— Ele não se apresentou no Quartel, conforme as ordens que tinha. Temos de nos certificar que não se encontra nesta casa.

Não se apresentou, porque se calhar foi direto para a Guerra e já lá está, em África, a lutar. A minha mãe ralha com eles.

— Nem pensem que podem entrar em minha casa. Nem pensem. Corro-vos já à vassourada — é muito boa com a vassoura, a minha mãe. — Vêm cá dizer-me que perderam o meu Tone, perderam o meu menino, e agora a culpa é dele? Ou minha, que o escondo? Ora, volte a pôr aí o pé que vai ver se não lhe acerto.

Não sei qual é o tipo de treino que têm homens de fato preto, mas não me parece que estejam preparados para lidar com a fúria da minha mãe. Eles lá sabem. O que lhes vale é o senhor Padre, que, entretanto, aparece de braços abertos e abraça a minha mãe.

— Oh, senhor reitor, eles perderam o meu menino — diz ela, de cabeça escondida no peito dele.

— Dona Idália, deixe lá os senhores entrarem. Eles prometem ser rápidos, não prometem? E farão tudo para encontrar o Tone.

Os homens entram calados, meios encolhidos, passeiam dentro de nossa casa, a espreitar por todo o lado. Quando saem, o mais gordo diz:

— Lamento, Dona Idália. Ninguém merece ter um desertor como filho.

Não sei o que é um desertor, mas, não fosse o senhor padre agarrá-la, o gordo de fato preto teria levado com o cabo da vassoura na tola. Quando eles já vão longe, a minha mãe manda-me para o meu quarto, para ficarem a falar sossegados.

Algo estranho se passa no meu quarto. Encontro os soldados portugueses todos encolhidos atrás do guarda-roupa, e os inimigos estão espalhados pelo quarto de armas em punho. Não sei do Soldado Tone. Não o vejo em lado nenhum, não está com os amigos, nem na caixa. Fico preocupado, mas acho que ele só está à espera da melhor altura para atacar. Há de voltar, tenho a certeza.

***

 Quem volta é o meu pai.

Chega de surpresa, um dia em que já estamos sentados para jantar. Nem a minha mãe sabe e quase vai parar ao chão. Quer ralhar com ele, mas não consegue. Acho que está feliz. Não a vejo feliz há muito tempo. Fica bonita.

Ela resmunga que não tem comida para ele, mas logo se arranja qualquer coisa e sentamo-nos os três à mesa. O meu pai tem muito para dizer.

— Não podem contar nada disto a ninguém. Combinado, Quim? Nem na escola, nem em lado nenhum. Nada de nada. Sim, rapaz?

Digo que sim. Sei guardar um segredo. Os soldados têm muitas vezes de guardar segredos e eu sou muito bom nisso.

— O Tone chegou a França.

A minha mãe quase cai outra vez.

— Então, Dália? Aguenta-me, mulher. Ele está bem. Ele e o Cino. O meu patrão arranjou-lhes quarto e trabalho. Não te escrevi porque… tu sabes. Os envelopes são fáceis de abrir. Não sabes nada sobre onde está o teu irmão, percebes, Quim?

— Sim.

Mas não percebo nada. Então, o Tone fugiu mesmo da Guerra e não quis ser soldado? Não quis lutar pelo país, pela honra de Portugal? Combater o inimigo e ganhar medalhas? Disparar armas verdadeiras? Teve medo? O meu irmão é um covarde? Faço essas perguntas todas. Todas de uma vez, umas em cima das outras.

O meu pai não responde logo. Mastiga, pensa e responde, por dentro da barba cinzenta.

— O teu irmão é muito valente. Não voltes a repetir isso. O nosso país ia mandar o teu irmão para que fosse morto numa guerra estúpida. Para ir matar gente sem saber porquê e ele recusou.

— Para ir matar os inimigos!

— São pessoas, Quim.

Ainda não percebo. Mas o que eu já sei muito bem é que há alturas em que me devo calar, e esta é uma delas.

Não volto a abrir a boca até voltar para o meu quarto. Não imaginam o que lá encontro.

Os soldados estão todos sentados numa grande roda. Todos, todos. Portugueses e inimigos. Sentados a conversar, com as armas pousadas. Até se estão a rir, uns com os outros, acho eu. Não me ligam nenhuma quando lhes digo que deviam estar a combater. Levantam-se e saltam pela janela. Alguns acenam-me, outros limitam-se a ir.

Fico sozinho no quarto.

Arrumo as armas na caixa de sapatos.

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Nuno Gonçalves devora livros desde há 30 anos. O prazer da leitura fez crescer a vontade de um dia ver as suas próprias palavras no papel, encadernadas, à espera de um leitor. O caminho escolhido foi outro e a Medicina atraiu-o mais do que as letras. Manteve a ligação à literatura, retomando os hábitos de leitura e dinamizando um blogue de crítica literário durante alguns anos. Inicia agora, com pequenos passos, uma nova caminhada na escrita de ficção.

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