São muitos os significados que o dicionário nos oferece sobre a palavra “paz”. Cada um terá a sua própria definição relativamente a esta pomba branca tão simples e tantas vezes esquecida.
Que sinónimo dar à paz aparente, dissimulada, nos bastidores de uma guerra? Será a designada ”paz podre”? Ou uma tranquilidade aparente, talvez por indiferença ou desconhecimento?
Muito cedo, pouco após ter nascido, fui transportada para um ambiente de guerra. Só uns anos mais tarde me aperceberia da enormidade deste facto histórico que tanto abalou as famílias portuguesas, atirando para a arena milhares de jovens e matando outros tantos inocentes nativos africanos.
A vivência pessoal permitiu-me chegar à conclusão de que se pode viver no meio de uma guerra sem deixar de se sentir paz, embora camuflada, dentro dos nossos lares.
Nasci no início dos anos sessenta quando deflagrou a Guerra Colonial nas províncias ultramarinas, como eram denominadas.
Em consequência da vida militar do meu pai, saí bem cedo do meu país, aos quatro anos, para um território de batalha, a Guiné-Bissau.
Ficámos nas trincheiras, aparentemente protegidos. Nunca suspeitei, perante a minha ingenuidade e ignorância infantis, dos horrores, das mortes de tantos inocentes, que aconteciam a cada minuto, não muito distantes de mim.
Eu, que sempre fui uma alma apaziguadora, vivia, sem saber, nos bastidores de uma guerra sem sentido.
Mais tarde, durante a minha adolescência em Angola, por preconceitos instituídos sobre as diferenças da cor da pele, senti que me era subtilmente incutida uma certa desconfiança em relação às pessoas negras. Havia que ter muita precaução, pois no meio delas havia os chamados “terroristas”. Como se lutar pela terra que a si pertence, fizesse deles o apanágio do terror! Por sinal, nunca fiz distinção das pessoas pela sua raça, religião, credo ou orientação sexual. Os meus melhores amigos eram negros. Existia sempre uma recíproca, inexplicável e instantânea empatia.
Um dia, ao visitar o hospital militar que se situava em frente à minha casa, deparei-me com o terror e o flagelo da guerra em toda a sua monstruosidade. Homens jovens mutilados, aos montes, abandonados ao seu destino, sem braços, sem pernas, sem pés, sem mãos, feridos no corpo e na alma, gritando por suas mães ausentes, mas tão presentes e preciosas nos seus corações amargurados. Os meus treze anos fugiram dali imediatamente. Não consegui evitar uma indisposição e um mal estar geral que se refletiram no mais profundo do meu corpo, ainda em fase de crescimento.
Até hoje, essas imagens, os cheiros, as feridas, os choros, os gritos de dor, perduram na minha memória.
O Vinte e Cinco de Abril de 1974 aconteceu quando tinha catorze anos. A partir daí, em Luanda, o tumulto da guerra aproximou-se de nós. A cidade agitou-se e havia fogo, fumo e fuga por todo o lado.
Recordo-me de estar no liceu e soar o boato de que fora colocada uma bomba na escola. A aflição dos pais foi tanta que afluiram rapidamente para resgatar as filhas (tratava-se de um liceu feminino).
Em nome de uma guerra, vivi alguns anos da minha inocência infantil sob os escombros de um conflito sem tréguas. Era como se a minha morada tivesse sido construída sobre uma mina prestes a explodir. Feliz ignorância de uma pressuposta paz que sempre habitará no coração dos mais puros!
“Os cadáveres são bons para esconder minas”