Batia-lhes apenas porque era o meu trabalho. Não porque quisesse ou porque me desse prazer. Era suposto fazê-lo e fazia-o sem hesitar ou sentir culpa. Havia quem gostasse, claro, de ver os escravos gemer, gritar, sangrar. Havia quem lhes escarrasse em cima e os pisasse quando estavam no chão. Curiosamente, esses eram os mesmos que se forçavam dentro delas.
Até àquele dia em que despejaram uma no convés, já de gatas, com sangue a coagular na pele escura. Puseram-se de roda dela, eu também, também estava nessa roda, porque era suposto, não que me agradasse, e passaram o chicote de mão em mão, para que cada um lhe pudesse arrear no lombo em ferida. Ela estava prenha. Quando o chicote me pousou nas mãos, ela olhou para mim e, naquele instante em que os olhos negros, húmidos, me fitaram, em que a boca se tentou abrir para dizer qualquer coisa, mas sem sucesso porque os lábios estavam inchados como batatas, nesse instante ela quase parecia uma pessoa. Uma pessoa como nós.
Parecia a minha irmã, que deixei em terra quando embarquei, grávida de um sobrinho meu, ou sobrinha. E também ela me tentou dizer qualquer coisa antes de eu partir, mas não lhe saiu nada. E talvez nunca venha a saber o que me queria dizer ou se esperava rapaz ou rapariga.
E eu ali, de chicote na mão, só a olhar para ela, toda prenha e quanto mais olhava mais prenha parecia ficar, a barriga cada vez maior e mais inchada. Convenci-me até de que iria acabar por parir mesmo ali, mesmo à minha frente, sem tirar os olhos de mim, sem conseguir dizer nada. Calada, a sangrar, e a parir.
Deixei cair o chicote.
Os meus companheiros acharam que eu estava só bêbedo, como de costume, e voltaram a pôr-mo nas mãos e eu atirei-o ao chão com força, para que percebessem, para que fosse claro, e virei costas. Foi aí que me agarraram e tentaram forçar-me a bater-lhe e eu gritei que não queria ou que não me apetecia ou outra coisa qualquer.
Dois deles lá compreenderam que eu me estava mesmo a recusar arrear na escrava prenha e arrastaram-me até ao capitão.
— Capitão, este amante de pretas atirou o chicote ao chão.
Tentei explicar. Não era por ser amante de pretas, mas não via razão para aquilo. Ela não pedira para estar ali, nem havia de ter pedido para emprenhar, nem para que lhe rasgassem a pele com o chicote e eu não via motivo nenhum para aquilo. O capitão deixou-me falar, sem me interromper, fiquei até na dúvida se me estaria a ouvir, ali sentado, imóvel e calado. Depois respondeu-me, num grande discurso com grandes palavras, falando comigo como se eu soubesse ler.
E eu pouco percebi. Falou-me de Deus e da Criação e de Eva e da maçã e depois do livro de Mateus e de escolher a porta larga ou a porta estreita. E no fim de tudo, disse apenas:
— Escolhe.
Arrastaram a negra para a minha frente. Mal se aguentava de gatas, estava estendida no chão. Ainda não tinha parido. Ainda olhava para mim.
Voltaram a enfiar-me o chicote na mão e eu voltei a lançá-lo ao chão.
O capitão talvez tenha sorrido, mas a cara mexia-se-lhe pouco, entravada pelas cicatrizes.
— Dêem-lhe a raiz.
Eles riram-se e puseram-me uma coisa à frente. Uma coisa escura e torcida, com um palmo de comprimento, coberta de terra húmida como se tivesse sido acabada de colher.
— Come.
Como não me parecia grande castigo, comi. Mas o que raio que aquilo fosse sabia ao sarro que eu limpava da sola das botas do meu pai, não que alguma vez o tivesse provado. Cuspi, e eles voltaram a enfiar-me o pedaço cuspido na boca. O estômago rejeitou aquilo e vomitei e o sabor ainda era pior depois de ter estado na minha barriga. Eles deviam estar à espera, porque me cerraram os dentes à força e o estômago lá atirou aquilo no sentido contrário.
Comi mais dois bocados. Não comi. Enfiaram-mos na goela.
Desmaiei.
Acordei afogado em náusea. Toda a minha pele ardia. Tentei levantar-me para ir vomitar, e caí. Caí porque uma corrente me prendia o tornozelo. Só então o cheiro me agrediu. Um cheiro ácido, podre, morto. Tapei o nariz e olhei em volta. Estava no meio deles. Eles, os negros. Eu estava no meio deles, preso no meio deles, acorrentado nas mesmas correntes que eles, deitado na mesma madeira apodrecida por urina. E eles sentados ou deitados, fazendo pouco caso de mim. Tentei puxar a corrente, forçá-la com as mãos e percebi, mesmo com a pouca luz que ali entrava, que a minha pele era negra. Os meus braços, o meu peito, negros. Levei a mão à cabeça. O meu cabelo, antes liso e oleoso, agora denso e encrespado.
Gritei, mas nem a voz era minha. Era como se fosse a sombra da minha voz. Gritei até eles virem, os meus companheiros. Chegaram de bastão na mão. Tentei explicar-lhes.
— Sou eu. Eu! O Porfírio!
O que chegou primeiro, a besta do Juvenal, partiu-me os dois dentes da frente com um soco. Depois, caíram todos em cima de mim. Pancadas, pontapés, bastonadas, até que desmaiei.
Acordei com um deles, dos negros, a limpar-me o sangue seco do lábio. Parecia um rapazote assim de perto. Nem sabia que transportávamos miúdos. Limpava-me com um farrapo que haveria de ter sido rasgado da roupa e que tresandava a mijo. Escorracei-o com um pontapé fraco e ele foi encolher-se junto dos outros. Continuava a olhar para mim, com olhos de diabo, olhos que brilhavam no escuro.
Tentei levantar-me, sem sucesso. Este corpo era inútil, ou por ser negro ou por estar todo quebrado. Tentei gritar e nada. Tentei chorar.
Todos os dias, tentei chorar.
Primeiro veio a fome. Estava habituado a ela. Conhecia-a desde a infância, de quando dava do meu pão à minha irmã, às vezes tirado da minha boca, meio mastigado. Tentei ignorá-la, a fome, mas acabei por arriscar trincar um dos biscoitos duros que nos atiravam. No escuro, não vi as larvas, só dei por elas quando já se passeavam na minha língua. Cuspi, enfiei os dedos na boca para as tentar matar, para as arrancar de dentro de mim. Eram tantas, do tamanho de uma unha, brancas e eu contorci-me e gritei e cuspi e vomitei e prometi que nunca mais comeria. Antes a morte.
Já eles comiam de tudo. Os biscoitos, as larvas… Vi-os comer ratos. Uns, matavam-nos com uma pancada na cabeça, outros, comiam-nos mesmo assim, a espernear, a cauda a revolver-se a cada dentada.
O capitão mandou chamar-me, não sei bem quantos dias teriam passado. Riu-se, quando me viu. Não sei se da minha cor, do meu cabelo ou das marcas da pancadaria. Não falou. Fez sinal com a cabeça e os outros arrastaram um negro para a minha frente. Um negro qualquer, que eu nem me lembrava de ter visto lá por baixo, ou se tivesse visto havia de o ter achado igual aos outros. Voltaram a enfiar-me o chicote na mão.
O negro não me olhou, não tentou dizer nada, nem se encolheu. Parecia, até, expor os costados para que eu lhe acertasse. Lá estavam pintados os vergões para me guiar.
Atirei o chicote ao chão e arrastaram-me novamente para a minha prisão, para onde os guardávamos, a eles, aos negros.
Depois de me prenderem, pontapearam-me até se cansarem.
Voltei a ser acordado pelo rapaz. Trazia-me um rato, morto e esfolado. Era quase apetitoso. Atirei-o pelo ar, o rato, não o rapaz, mas tinha vontade, se ele não tivesse fugido. Não desistiu e voltou a aproximar-se, mas agora com metade de um biscoito. Desfê-lo com muito cuidado, em pequenos bocados, e mostrou-me cada um deles, mostrou-me como estava livre de insetos.
Acabei por aceitar, talvez porque não o queria aturar mais, e ele sorriu, num sorriso gengivoso, sem dentes. Como é que trincaria os ratos? Caiu-me bem o biscoito.
Depois veio a sede. Davam-me metade da água que lhes davam a eles, aos negros. Havia dias que acho que me davam mijo em vez de água. A fome eu conhecia. A sede enlouquece e, na loucura, faz-nos ver coisas.
Vi-me nascer, no meio dos gritos da minha mãe, da indiferença do meu pai. E quanto mais secava, quanto mais murchava, mais as feridas causadas pelos meus companheiros se abriam e purgavam e reluziam. Vi-me morrer, no meio dos excrementos dos negros. E as feridas tornavam-se um chamariz para as larvas. Vi a minha irmã, que me queria dizer qualquer coisa e continuava sem conseguir falar. Ainda tinha o meu sobrinho na barriga. Até que já não o tinha na barriga, tinha-o nos braços e não era um sobrinho, era uma menina e depois percebi que era negro, porque não era a minha irmã, era a negra prenha, que agora não estava prenha e me vinha mostrar uma bebé, uma bebé que poderia ser minha sobrinha, mas estava ali, demasiado calada, demasiado magra, demasiado escura. Vi o céu mergulhar no mar e o mar engoliu o céu como se nada fosse, como se o mar tivesse sede de ar. E, às vezes, o rapaz vinha e tentava limpar-me as feridas, mas qualquer toque me causava dor e nojo e também comecei a ver cada vez menos, pois tudo surgia apagado, seco.
As larvas acumularam-se no meu pé, no meu pé negro, senti-as moverem-se sobre a minha pele, por baixo da minha pele, comendo-me, mastigando-me, pondo ovos na minha carne, fazendo de mim o seu ninho de onde novas moscas saíam. E as larvas haveriam de me comer toda a carne ressequida, toda a carne negra, por aí acima, desde o pé até me chegarem ao peito, ao pescoço, ao rosto, a moverem-se devagar, mas sem parar, por mim acima, a comer tudo o que encontrassem e eu sabia que iria sentir tudo, que só morreria quando estivesse devorado, ou nem aí, e continuaria a espernear na barriga das larvas, na barriga das moscas.
Então gritei. Acho que gritei. Gritei tão alto que ensurdeci e nem fui capaz de ouvir os meus próprios gritos. Eles ouviram e vieram buscar-me para me levar ao capitão. Sabiam que eu estava pronto.
Puseram-me o chicote na mão. Olhei para o negro ajoelhado à minha frente. Era o rapaz.
A minha mão ergueu-se.
Os seus olhos brilhavam.
A minha mão brandiu o chicote. Uma, duas, tantas vezes.
Até que os seus olhos se apagaram.
Mas a minha mão continuou.
A minha mão. Branca.


