Autor(a):

Ondina Gaspar

A caneta preguiçosa

‒ Menino Francisco, não o vejo a escrever nada. Já avisei que têm de acabar a composição. Daqui a vinte minutos todos têm de a entregar.

‒ Mas, mas, senhora professora, a minha caneta não escreve ‒ responde o Francisco muito atrapalhado.

‒ Quantas vezes já vos avisei para trazerem sempre uma caneta com tinta?

A Dona Caneta azul espreguiça-se. Tem a barriga cheia, mas hoje não lhe apetece escrever. Prefere ficar ali no estojo, quietinha, a relembrar letras e números e histórias secretas que só uma caneta como ela já escreveu na vida e guardará em segredo.

 O senhor Lápis, seu vizinho, sente-se frustrado. “Nunca se lembram de mim. ” ‒ pensa ‒ “Deve ser por eu ter um bico negro de carvão.” Está tão fraquinho e sente que, ao mínimo esforço, o seu bico se partirá e lá terá que pedir ajuda à Dona Afiadeira. Esta e a Dona Borracha são amigas fiéis, mas a vida delas consiste em socorrer o senhor Lápis até ao fim dos seus dias. A verdade é que ele não poderia existir se não fossem elas. Considera-as como uma mãe e uma avó.

Quando o seu bico se parte, lá está a Dona Afiadeira sempre pronta para lhe dar mais uma vida. A Dona Borracha alegra-se cada vez que o Lápis faz asneiras e rabiscos. É a sua oportunidade de entrar em ação.

Ao lado moram os meninos Lápis de Cor. São muito alegres e divertem-se a colorir todas as folhas brancas que apanham a jeito. Têm muita imaginação. E nada lhes escapa. Se tiverem de pintar um desenho feito pelo senhor Lápis, nem um único pormenor lhes escapa.

O menino Francisco continua perdido, sem saber o que fazer. A Dona Caneta continua fiel à sua determinação de não querer trabalhar e ficar sossegadinha no estojo a viajar pelas letras e números. A professora, vendo a inquietação do menino, chama-o de novo à atenção.

O senhor Lápis, que sempre foi preterido e esquecido, tenta a todo o custo, rebolar para fora do estojo. Mas, logo os Lápis de Cor vêm em seu encalço e formam uma roda a obstruir a sua passagem.

“E se eu colorir a página, em vez de escrever?”, pensa o Francisco.

Os Lápis de Cor põem-se logo em pé, pedindo, por favor, para serem usados.

‒ Nós fazemos um desenho! Vai ficar muito bonito ‒ suplicam em coro.

O senhor Lápis encosta o bico à Dona Borracha e chora desconsolado. Esta, com a sua pele branca e macia, acaricia-o, como se ele fosse o seu bebé. Conta-lhe histórias de antigamente, quando ele era o preferido de todos. Nesses velhos tempos, não existiam os Corretores, uns senhores de baba branca, que se espremem todos para apagar tintas. Os Mata-Borrões, esses coitados, já estão mortos e enterrados há séculos. Ninguém se lembra deles.

A Dona Afiadeira, esquecida por todos, cada vez mais inútil, adormece, sonhando com um mundo cheio de lápis amigos precisando dela.

A professora parece não achar graça nenhuma ao desenho do menino. Embora este esteja de acordo com o tema ( representa um menino a subir no espaço num balão rumo às nuvens e aos pássaros), o que pretendia era uma composição com o título   “O menino que queria ir ao céu”.

A Dona Piedade está muito zangada, mas esboça um leve sorriso. Contudo, disfarça-o para manter a ordem.

‒ Francisco, para a próxima não vou admitir mais estas avarias.

O menino treme que nem varas verdes.

A Dona Caneta, escondida dentro do estojo, ri a bandeiras despregadas. Sabe que a sua decisão de não escrever tinha sido infeliz, mas era tão bom espreguiçar-se e sonhar… Nunca tinha percebido por que razão era a mais solicitada. Porque é que o senhor Lápis, a Dona Afiadeira e a Dona Borracha, estavam sempre quietinhos no seu canto?

Era um dia frio e áspero de Inverno, que fazia tremer até uma simples caneta. Não lhe apetecia nada ir para as mãos trémulas e gélidas do menino e andar por ali a tremelicar à deriva. Estava tão quentinha ali dentro. Por outro lado, sentia que estava a ficar velha e ultrapassada.

Falava-se que tinham aparecido uma espécie de extraterrestres a que chamavam “computadores”, “tablets” (seriam chocolates, as únicas tabletes que conhecia?). Eram uns seres horrendos, grandes e feios, cheios de labirintos de fios e teclas, muito complicados e difíceis de perceber para uma simples e mortal caneta.

Sentia-se uma formiga. Mas até já nem se importava. Era da maneira que podia descansar. Eles que trabalhassem agora e mostrassem o seu poder ao mundo. Ela e os da sua geração já tinham cumprido a sua missão e dado muito que falar por esses livros e manuscritos fora. E tinha a certeza, que as suas irmãs, filhas e primas continuariam.

Agora era hora de se aposentar e dar lugar aos mais novos: essas crianças chamadas Teclas, Monitores e (vejam lá!) Ratos. Como se, alguma vez, esses animais se pudessem imiscuir nos assuntos das letras e dos números! Enfim!…Modernices!

Num dia de verão quente, já quase no término do ano letivo em que todos já só pensavam em férias, o menino Francisco decidiu apresentar o seu computador novo na escola. O pai tinha-lho oferecido como prenda de anos e ele, todo contente, queria mostrá-lo à professora e aos colegas.

Nesse dia, o estojo limitou-se a passear na mochila, de casa para a escola e da escola para casa, com os habituais habitantes, curiosos e atónitos, lá dentro. Pobres esquecidos!

A Dona Caneta não estava nada preocupada. Se calhar, tinha chegado o momento de finalmente descansar o seu corpo plástico e roliço de sangue azul. Sim. O dela era azul. Não era uma caneta qualquer, como essas ordinárias de sangue vermelho como os tristes humanos ou preto como…como…aqueles seres marinhos nojentos…como se chamam? Ah, os chocos!!

Ela era uma rainha nobre no seu porte e de sangue bem azul. Já começava a ter falta de circulação, mas com sopro daqui e sopro dali, espremida e lá continuava de pé. Mas, agora, preferia ficar deitada e divertir-se a observar por um pequeno buraco do estojo os tais monstrinhos eletrónicos e complicados.

O monstrinho do menino Francisco era pequenino e transportável. Chamavam-lhe portátil. Era quase um brinquedo. Um Pêcê. Isso é nome de gente? Seria diminutivo de quê? Mas não interessa…

Já que a caneta estava em greve, pretendia mostrar à professora que havia substitutos. Francisco sempre fora muito inovador, como já deu para perceber.

O menino Pêcê era muito complicado. Primeiro pediu uma palavra passe.

“Que é isso de palavra passe?” ‒ questionava o Francisco, já arrependido de se ter metido nessa aventura. Carregava, vezes sem conta, nas pobres das teclas, que se encolhiam, cheias de medo, sob os seus dedos, e nada saía.

“E agora?” Tinha uma composição para fazer e a Dona Caneta recusava-se a trabalhar, como era habitual.

O senhor Lápis bem esticou o seu bico bem alto para se lembrar dele, mas o Francisco nem reparou.

A Dona Borracha e a Dona Afiadeira nem se pronunciaram. Não valia a pena. Renderam-se à sua inutilidade. Eram obsoletas.

Os meninos Lápis de Cor saltavam na sua caixa a suplicar em gritos estridentes:

‒Nós, nós! Estamos aqui! Lembrem-se de nós!

Nada, não houve resposta ao pedido.

Francisco não queria dar parte de fraco e continuava a sufocar as teclas e números ao acaso na tentativa de procurar a palavra passe.

Até que “o monstrinho” Pêcê ficou tão baralhado que bloqueou. O menino chorava desolado de tão frustrado que se sentia.

Afinal, se calhar, seria melhor recorrer à sua velha caneta. Esta parecia adivinhar-lhe os pensamentos e achou que finalmente tinha chegado a sua hora.

E, antes que o menino abrisse o estojo e a obrigasse a sair da sua fiel letargia, sabendo que já teria pouca utilidade, decidiu fazer uma coisa: esgueirou-se, espreitou pelo fecho do seu esconderijo e decidiu que dali só sairia esvaída em sangue azul, com toda a sua dignidade de rainha. Jorrou uns pingos, e mais e mais, até ficar sem pinta de sangue.

Ficaria apenas na memória de alguns. Tinha mantido a sua postura no mundo fascinante da escrita. Essas máquinas modernas e insolentes nunca saberiam apreciá-la.

Ou talvez não. Quem sabe se o Francisquinho não terá aprendido que todos temos um lugar e um tempo no mundo? Que tudo poderia melhorar, se existisse a união entre todos e que nada nem ninguém poderá tirar o lugar ao outro?

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AUTOR(A)
Ondina Gaspar

Ondina Gaspar nasceu a 2 de Novembro de 1960, na Figueira da Foz onde vive atualmente.

Desde pequena que sonhava ser escritora. Sempre teve gosto pela leitura e escrita.

Filha de militar, desde o berço que levou uma vida itinerante, incluindo terras de África. Estas circunstâncias, bem como a sua sensibilidade, curiosidade e sede de conhecimento, conduziram-na a outras viagens, interiores, na busca do conhecimento da natureza humana.

Começou a escrever um blog de reflexões e poesia aos 50 anos, como terapia.

Editou um livro intitulado “Castelos de Areia”, baseado no blog.

Frequentou vários cursos de escrita criativa e colaborou em várias coletâneas com contos e poesias. Neste momento, é membro do Clube dos Writers, cuja mentora é Analita Alves dos Santos.

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