Autor(a):

Joana Patacas

Teias de enganos

Num mundo compelido pela incessante busca da singularidade, onde o tumulto da passagem do tempo coexiste com a solidão latente que se aloja nas brechas do quotidiano, o ser humano desdobra-se num diálogo surdo. De um lado, estão os que marcham sob a égide do destino inescapável, embalados no aconchego da certeza de que o amanhã já se encontra delineado. Do outro, os que advogam o livre arbítrio, crentes na capacidade de escrever e reescrever a sua própria narrativa, a cada momento, a cada decisão. Entre estes dois extremos, reside uma maioria silente que não questiona, e, arrasta os pés no solo áspero da existência. Tão habituada que está ao peso da apatia, que mal sente os grilhões oxidados, como um animal de carga resignado ao seu destino.

Há anos que Sandra vivia como se fosse uma folha ao sabor do vento, com as circunstâncias a levá-la, sem resistência ou contestação. Foi assim, com a estranheza de quem acorda de um sono profundo e desprovido de sonhos, que ela se questionou, pela primeira vez em muito tempo, «será que a vida é apenas isto?». Sem saber como chegara àquele instante, ou se essa revelação alteraria algo, num dia que era espelho de tantos que o precederam, viu esvair-se a certeza de alguma vez ter pisado o lado certo.

É muitas vezes no seio do banal que as revelações nos visitam. No meio do gesto repetido e nos dizeres de todos os dias, eis que emergem, de repente, como se sempre ali tivessem estado, à espera de serem descobertas. São como estrelas em pleno dia, sempre presentes, mas eclipsadas pela luz crua da rotina. E quando se revelam, fazem-no com a suavidade de uma gota que, ao cair, quebra a superfície serena do lago da nossa consciência, criando ondas propagadas pelos recantos mais profundos do ser, alterando, sem alarde, o reflexo que temos de nós próprios e do mundo que nos circunda.

Sandra esfregava um prato com a esponja, os movimentos circulares quase hipnóticos, como se tentasse purgar mais do que simples restos de comida. A água corria da torneira com um sussurro suave, acompanhamento sonoro para o drama humano que estava prestes a desenrolar-se.

E ali estava ele, Miguel, ao alcance de um simples toque, ainda que separado por um abismo de palavras sepultadas na monotonia do quotidiano. Encostado à parede, observava com um olhar irónico a determinação dela em lavar a louça à mão, desprezando a comodidade da máquina de lavar.

– Já sabes o que aconteceu entre o teu irmão e a Alice? – A voz de Sandra rasgou o silêncio, misto de curiosidade e preocupação.

O que omitiu foi o impacto do telefonema da sogra, mais cedo, cuja aspereza ressoara como um mau presságio: «Tenha juízo, Sandra. Ai de si que se alie àquela desvairada. Está proibida de falar com ela.» Mas ela falou, e o que ouviu gelou-lhe o sangue nas veias, transformando tudo em redor em estilhaços de medo e preocupação.

– Ah, então já estás a par. Vamos ter de abordar isto. A Alice enlouqueceu – proferiu Miguel, de forma distante, enquanto deslizava o dedo pelo ecrã do telemóvel. – Temos de ter cuidado com ela.

Sandra sentiu uma contração súbita no estômago, como se algo frio e sólido se tivesse alojado, acomodando-se, nas curvas do seu interior. Detestava quando ele adotava aquele tom, como se as mulheres fossem engenhos prestes a detonar, cujos estilhaços, uma vez libertados, teriam o poder de despedaçar a ordem meticulosamente cultivada que envolvia as suas vidas, deixando apenas o caos e a desordem na sua esteira. Até porque ouvira a versão de Alice e o que a cunhada dissera ficara gravado a fogo na sua mente.

Miguel continuou:

– O meu irmão vai processá-la por agressão. Vai ficar com as gémeas e na penúria – profetizou, com um encolher de ombros que denunciava a sua indiferença perante o destino da cunhada.

Nas profundezas da sua alma, Sandra revirava-se numa tempestade silenciosa.

– Isso é inaceitável – afirmou, com a voz tingida por uma gravidade que era raro usar. – Conversei com ela. Não sei se as coisas se passaram bem como o teu irmão diz.

– A minha mãe não te tinha proibido de falares com ela? – retorquiu sibilante, como quem não admite ser contrariado. – O que é que ela te disse? –perguntou, pousando com discrição o telemóvel na bancada da cozinha e ativando a gravação, sem que Sandra notasse.

– Contou-me que pediu o divórcio, que se apaixonou por outra pessoa e quer ser feliz. Que o teu irmão se descontrolou, como é hábito, mas que, desta vez, foi longe demais. – Hesitou por uns segundos, mas logo retomou com uma determinação renovada. – Ele empurrou-a e ela caiu ao chão. Teve de levar três pontos na parte de trás da cabeça. Foi ao hospital. Existem registos.

O cansaço pesava em Sandra como um manto de chumbo. Eram amigas, aliadas naquele ambiente tóxico onde os seus maridos eram idolatrados pelos sogros, figuras de alguma distinção, pertencentes a uma classe discreta, mas detentora de poder, que parecia comandar o seu mundo com um punho de ferro. Eram mestres na arte de manter uma fachada impecável, não tolerando qualquer deslize que pudesse manchar a imagem de perfeição que trabalharam com tanto afinco para construir e preservar.

– Existem registos, dizes tu – articulou o esposo, deixando que o que proferira flutuasse no espaço entre eles.

Deslizou os dedos pela superfície gelada e lisa da bancada, agarrando no telemóvel e suspendendo a gravação. Passeou-se pelo amplo espaço da cozinha, a tensão no maxilar evidenciando a sua atenção plena. O olhar era afiado, em estado de vigilância. Ao retomar a conversa, já se encontrava frente a frente com Sandra, o olhar de um a penetrar no do outro.

– Os registos têm uma forma curiosa de se desvanecer quando conheces as pessoas certas. O Duarte apresentou queixa na polícia. Os hematomas e arranhões são um toque dramático que a imprensa vai adorar, vão ficar do lado dele.

Sentiu-se nauseada e encurralada em igual medida, mas, ainda assim, reuniu coragem para dizer:

– A Alice também apresentou queixa! Não me vais dizer que acreditas que ela, que é tão pequena e magra, conseguiu deixar o Duarte com um olho negro.

– Não, não é uma questão de acreditar ou não – afirmou, irritado. – O que importa é a nossa versão da história. Já falei com o advogado e amanhã temos uma reunião para alinhar o que vamos dizer. – Miguel prosseguiu, com um tom gélido que a inquietou. – Vais ter de testemunhar contra a Alice. O advogado considera que o teu testemunho, enquanto mulher de família, vai fortalecer a nossa posição.

– Isso é uma loucura – atirou, com um fio de temor a vibrar-lhe na voz. – Ela só quer o divórcio. Não era mais fácil cada um seguir o seu caminho? Para uma família que se preocupa tanto em evitar escândalos, isto vai ser pratinho para os jornalistas.

Miguel encurtou a distância entre os dois e apertou-lhe o braço com uma força que a fez estremecer.

– Loucura era ver o Duarte estampado na capa das revistas como um marido traído, um corno humilhado – retorqui. Depois acrescentou num tom calculista: – Isto ainda vai jogar a nosso favor. Podemos até criar uma associação em nome dele para combater a violência doméstica contra os homens. É uma ideia brilhante.

Miguel deixou-a atordoada com o seu discurso. No peito fervilhava a fúria da revolta, mas as palavras escapavam-lhe, e a frieza dele deixara-a sem réplica. Sentindo o aperto no seu braço intensificar-se ao ponto de ser doloroso, apenas conseguiu murmurar:

– Larga-me, estás a magoar-me.

Soltou-a de repente e ela oscilou, agarrando-se à bancada para evitar a queda. As lágrimas ameaçavam romper as barreiras dos olhos, prontas a transbordar. Ele encarou-a com uma expressão que exigia lealdade e disparou, a voz tingida de um misto de expectativa e desapontamento.

– Como vai ser? De que lado estás? Espero que seja do lado certo… – a sua voz tornou-se mais sombria e ameaçadora. – O que aconteceu à Alice pode acontecer-te a ti também.

Sem esperar resposta, virou-se com uma frieza desdenhosa e saiu da cozinha, caminhando até ao escritório com passos resolutos. A porta fechou-se com estrépito, ecoando na quietude repentina da cozinha. A mulher virou-se para o lava-loiça, numa tentativa de retomar a tarefa interrompida, mas, ao olhar para água oleosa, um calafrio de aversão percorreu-lhe a espinha. Os restos de comida flutuavam à superfície, como detritos à deriva, espelhando o caos que agora invadia o seu mundo. Tentou segurar a esponja, mas a sua mão tremia.

Num arroubo de desespero, abandonou tudo. Percorreu o corredor. O chão frio sob os pés descalços despertava cada fibra do seu ser, enquanto os eventos da noite pareciam desligar-se da realidade. Entrou em bicos dos pés no quarto do filho, receando que qualquer gesto mais brusco pudesse despedaçar o frágil equilíbrio do mundo. A ténue luz de presença lançava um halo etéreo sobre o rosto adormecido de Afonso, resplandecendo sob um suave brilho azulado que desenhava um céu estrelado no teto.

Sentou-se à beira da cama e permaneceu imóvel, até que sentiu o telemóvel vibrar no bolso do casaco. Era Alice. O pedido de auxílio pulsava no ecrã: «O Duarte expulsou-me de casa. Não me deixou levar nada. Cancelou todos os cartões da nossa conta. Posso passar a noite convosco? Ele enlouqueceu. Preciso da vossa ajuda…». Com um suspiro carregado, digitou: «Estás por tua conta», apagou a mensagem e bloqueou o número.

Ergueu-se, abandonando o quarto do filho com a promessa silenciosa de protegê-lo, acontecesse o que acontecesse. Com passadas determinadas, rumou ao escritório de Miguel, dando umas batidas leves na porta antes de a transpor. O olhar entre ambos estendeu-se por segundos, até que ela, por fim, rasgou o silêncio:

– Já decidiram qual a versão da história que tenho de contar? – inquiriu, esforçando-se por manter a voz estável. – Quanto mais cedo começar a ensaiar, melhor.

Miguel avaliou-a por um momento, que pareceu desdobrar-se indefinidamente, até que um sorriso gélido e calculista floresceu no seu semblante. Prendeu o olhar dela por mais um instante, e, então, desviou a atenção para os documentos à sua frente, como se nada de singular houvesse transcorrido.

– Amanhã reunimos com o advogado às oito horas. Vamos juntos, depois deixo-te na Fundação – E mergulhou de novo nos seus papéis, como se a conversa tivesse findado e a normalidade sido restituída.

Sandra concordou, com um aceno tácito. Enquanto recuava para o quarto, ainda perguntou:

– Como é que o Duarte conseguiu aquelas marcas?

Ele esboçou um sorriso travesso, quase infantil, e explicou:

– Oh, não foi nada que uma maquilhadora talentosa e o nosso médico particular não conseguissem resolver. O relatório já está com o advogado.

Com uma pausa teatral, acrescentou:

– A Alice não tem hipótese. Fizeste bem em ficar do nosso lado. – Parecia, por fim, relaxado, como se um peso tivesse sido retirado dos seus ombros.

Aquele embate deixou-a numa espiral de emoções, que a seguiu pelo corredor silencioso até ao refúgio do seu quarto. No meio do desassossego que a invadia, uma claridade fria abateu-se sobre ela; agora percebia, sem dissimulações, a essência daquela família. Ainda assim, ao deitar-se na cama, a quietude da noite amplificou o peso da vergonha e da deslealdade que se abateu sobre o seu ser, ciente de que trilhava um caminho sem volta.

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AUTOR(A)
Joana Patacas

Joana Patacas, natural de Lisboa (1983), é licenciada em Jornalismo e em História, com especialidade em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa. Tem formação em edição de texto e é pós-graduada em Storytelling pelo IADE. Trabalha em revisão de texto e produção de conteúdos na área do marketing digital. É genealogista e documenta a história dos antepassados em livros de família.

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