Autor(a):

Alexandra Maria Duarte

A revolta dos lápis de cor

— Roxo!

— Presente.

— Verde-claro!

— Presente.

— Verde-escuro!

— Presente.

— E, por fim, Violeta!

— Presente.

— Então e eu? Eu venho antes do Violeta.

— Ai, desculpa Vermelho, sim, tens razão. Vermelho!

— Presente.

— Agora sim, parece que estamos todos.

— Antes de começarmos, gostaria de dizer algo, pode ser?

— Diz lá Violeta.

— Sem querer ser mal-educado, não percebo o que as telas em branco estão aqui a fazer. Esta reunião não é só para os lápis? — Virou-se para as telas. — Nada pessoal, sim?

As telas acenaram, como que a dizer «tudo bem».

Paleta, o presidente da reunião, começou:

— Eu pedi-lhes que estivessem presentes porque, na verdade, também estão envolvidas no assunto. Então vamos lá. Veem que tenho aqui comigo uma carta e um jornal?

Os lápis acenaram com a cabeça. Não tinham dado grande importância aos papéis.

 — Esta carta foi encontrada pelo Azul-claro, durante uma das suas deambulações pelo sótão da casa.

Algumas cabeças de lápis olharam para ele, curiosas. As telas também.

— Pois, é verdade. Desculpem lá, mas já estava a sentir-me claustrofóbico dentro da nossa caixa, sempre tão juntinhos, lado a lado. Apeteceu-me dar uma volta e acabei por ir dar ao sótão.

— E a carta estava lá? — O Verde-escuro interrompeu. — E diz o quê? É de quem? Para quem?

— Estava endereçada aos lápis de cor do futuro — continuou o Azul-claro. — Não sei se sou do futuro, mas como sou lápis, e sou de cor, tomei a liberdade de abrir o envelope.

— Conta, conta! — O Laranja estava em pulgas.

— Ó Paleta — grita o Castanho, — já que estás a presidir a reunião, abre lá a carta e lê, vá, estamos aqui todos curiosos.

— Muito bem, aqui vai.

Pega na folha e começa a ler:

Sótão da Casa Amarela, 1 de Junho de 1954

 

A todos os que possam ler esta carta: lápis de cor, lápis de cera, aguarelas, tintas acrílicas, marcadores ou outros. Espero que vos encontre com boas cores.

Escrevo-a na esperança de ajudar os lápis a entenderem a sua missão. Quando não entendemos o nosso propósito de vida, nada faz sentido e corremos o risco de perder a oportunidade de fazer algo grandioso.

Antes de mais, permitam apresentar-me: sou a caixa que albergou, em tempos, doze lápis de cor. Estivemos juntos muito tempo. Habituámo-nos a isso. Foi, portanto, estranho, quando fomos comprados e trazidos para esta casa. Os lápis não queriam ser usados, sabiam que se isso acontecesse iriam desaparecer. Ora, ninguém quer desaparecer, não é verdade? Aqui em casa havia duas crianças. Uma não nos ligava muito, a outra sim. A que gostava de nós tirava os lápis da caixa e desenhava; não sei bem o quê, eram uns rabiscos, mas ela insistia. Riscava, pintava e afiava. Os lápis iam ficando mais pequenos. Quando estavam a chegar a cerca de metade do tamanho original decidiram fazer greve. A criança pegava neles para pintar e nada acontecia. Ela pressionava-os, carregava na folha, mas eles mantinham-se quietos e não saía cor alguma. Após algum tempo, foram postos de lado, afinal para que se quer uma caixa de lápis de cor se eles não dão cor a nada. Os lápis pensavam ter vencido. Estavam felizes, já não iam desaparecer, iriam viver na caixa, felizes para sempre.

— Fizeram eles muito bem — murmurou o Cinzento, para quem o quis ouvir.

— Sim, senhor — concordou o Laranja.

Os lápis pareciam compreender as razões dos companheiros mais antigos, que se recusaram a aceitar o seu fim.

— Vou continuar — disse o Paleta. — Ora, onde é que eu ia?… na caixa, felizes para sempre.

Assim foi. Mas o tempo foi passando, passando e nada acontecia. Pudera, o que é que havia de acontecer? Os lápis começaram a aborrecer-se. Já não tinham assunto de conversa. Nos velhos tempos havia sempre novidades: “olha, hoje fui usado para desenhar uma flor”; “ah, eu pintei um gato”; “e eu o telhado de uma casa”. Era assim o normal funcionamento de uma caixa de lápis de cor. Nessa época eram felizes. Começaram, então, a questionar-se: teriam tomado a decisão errada? A sua missão era pintar. Iam desaparecendo, mas renascendo nas folhas, nas telas, em qualquer superfície por onde passassem. Deveria ser esse o seu legado.

A afiadeira assustava-os um pouco, é certo; contudo, perceberam que também ela servia um propósito. Cada vez que os lápis eram afiados ficavam mais fortes e as cores mais vivas.

Amigos, futuros leitores destas minhas palavras, achei que devia contar esta história, para que não cometam o mesmo erro.

Quando cancelaram a greve era tarde demais. A criança já tinha uma caixa nova e eu acabei perdida no sótão, junto de outros objectos sem utilidade. Com a humidade os lápis foram-se estragando, tal como eu, pois sou feita de cartão. Não durarei muito mais. Em breve, alguém virá limpar o sótão, suponho. Temo que, dentro de algum tempo, terminemos no caixote do lixo.

Deixo esta carta escondida, confiando que seja encontrada por algum lápis, pincel ou marcador. Não cometam o mesmo erro, deixem-se usar e façam nascer maravilhosas obras de arte. Assim, viverão para sempre.

Saudações coloridas.

Atenciosamente,

Caixa de lápis de cor

O silêncio durou alguns minutos. Os lápis não sabiam o que pensar. Também eles estavam em greve e, veja-se a coincidência, pela mesma razão; e era, também, o motivo pelo qual a reunião tinha sido convocada.

— Vamos lá ver — começou o Vermelho, um pouco exaltado, — aqui a situação é diferente, não vamos ter problemas com a humidade, a nossa caixa é de metal, não é de cartão.

— Concordo — apoiou o Amarelo.

— Não sei — observou o Cinzento. — E se a caixa enferruja?

— Bem vistas as coisas, até faz sentido o que diz a carta — o Laranja mostrava-se pensativo.

— Mau, então agora querem cancelar a greve? — O Castanho levantou-se, de mãos na anca.

— Vamos ter calma, senhores, ainda há muito para falar — o Paleta olhou na direcção das telas, já que uma delas levantara a mão.

— Se me permitem, gostava de dizer umas palavras — a tela de maior tamanho levantou-se.

— Falo por mim e em nome das minhas colegas — olhou para as outras telas, que concordaram, — da nossa parte estamos disponíveis para colaborar com vocês. Uma tela em branco não passa disso. É convosco que nos transformamos e revelamos a nossa personalidade. Juntos podemos ser o sonho de alguém.

Os lápis agitaram-se, alguns pareciam até comovidos. O Rosa não conseguiu evitar uma pequena lágrima.

— Eh lá, ainda pintas o chão — murmurou o Violeta. — Pega lá no lenço.

O Paleta tomou a palavra.

— Ora bem, peço-vos que tenham em mente as palavras da colega Tela, enquanto vos mostro o conteúdo deste jornal — e abanou-o no ar.

— Já nem me lembrava do jornal — sussurrou alguém para o colega do lado.

— Também estava no sótão? — perguntou o Rosa, já composto e sem lágrimas.

O Paleta mostra a primeira página.

— Não, este veio de outro sítio. Olhem bem aqui na frente, conseguem ver?

O Amarelo, na primeira fila, focou os olhos e leu:

— Diário Mil Cores, o seu jornal matinal, de dia 25 de Agosto de… espera lá que estou a ver mal…

— Então, o que é que diz? Aqui atrás não dá para ver — o Vermelho gesticulava batendo levemente nos olhos.

— Deixa estar Amarelo, eu prossigo — proferiu o Paleta. — É isso mesmo que viste, este jornal saiu… sairá… — estava hesitante — daqui a vinte anos!

Os lápis riram.

— Essa agora.

— Tens piada.

— Isso é lá possível.

— Então foste buscá-lo onde? Tens uma máquina do tempo?

— Eu não — o Paleta abre o jornal, — mas se calhar alguém tem. Enfiaram o jornal debaixo da porta do meu quarto, enquanto eu dormia.

Muitos ohhh e alguns ahhh tilintaram pela sala. E ainda uns quantos Como? Mas quem? Mas não pode ser, pois não?

— Depois da carta, achei que também tinha de mostrar o jornal.

— Mas, ó Paleta, vamos lá ver, isso não é possível — o Verde-claro, calado até então, decidiu trazer alguma seriedade ao assunto. — Afinal, quem é que foi o engraçado que inventou este jornal?

Levantou-se e olhou para todos, até para as telas, mas ninguém se acusou.

O Azul-escuro argumentou:

— E se lêssemos o jornal primeiro? Depois, decidimos se a data é importante ou não.

— Sr. Paleta, tem alguma notícia interessante? — Uma tela quis saber.

— Tem sim, aqui na página cinco. Ora escutem com atenção:

Foi hoje inaugurada a primeira exposição a solo de Lucas Vasconcelos, jovem promissor da nossa cidade. Vasconcelos participou, anteriormente, noutros eventos, em companhia de outros criadores, onde as suas obras já tinham sido notadas. As críticas ao trabalho do jovem artista têm sido positivas, enaltecendo os quadros, que revelam grande sensibilidade estética. A exposição estará aberta ao público na Galeria Arco-Íris, até final do ano.

Não foi preciso dizer mais nada. Os lápis entenderam, por fim, qual era a sua missão de vida. A reunião terminou e a greve foi cancelada. Regressaram a casa sem grande alvoroço e dirigiram-se ao quarto. As telas encostaram-se à parede e os lápis voltaram, ordeiramente, para dentro da caixa de metal que estava em cima da secretária; na cama ao lado, o pequeno Lucas Vasconcelos dormia profundamente.

O presente texto não segue a grafia do novo AO

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AUTOR(A)
Alexandra Maria Duarte

Nascida em Castelo Branco, rumou a Lisboa para estudar Línguas e Literaturas Modernas. Após a licenciatura fez uma pós-graduação em Tradução. Entre 2000 e 2001 participou na redacção e edição do livro «Ribatejo – Receituário Regional Tradicional», tendo também colaborado, ocasionalmente, com a revista «Cardápio – Saber Viver». A paixão pela escrita sempre se manteve, mas só em 2020 começa a frequentar cursos de escrita criativa. Vem a publicar o seu primeiro conto na colectânea «Não vão os lobos voltar», obra que chega ao público em 2021 e, no ano seguinte, apresenta o primeiro conto infantil na colectânea “Contos que contas tu”.

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