Autor(a):

Ana Costa
Ana Costa

Cicatrizes

Risos, gritos, correrias e poeira no ar eram sinal de que a hora do recreio chegara. Naquela pequena escola do 1º ciclo, só havia quatro turmas e, no espaço envolvente, o campo, as crianças corriam desenfreadas atrás da bola. O Martim passava o tempo livre ali, desde que não chovesse, pois a dona Matilde não deixava ninguém molhar-se.

Todos os dias, chegava a casa com as sapatilhas cheias de areia e os joelhos esfolados.

— Ó mãe, foi a recuperar a bola, tive de me atirar ao chão — argumentava, perante o desespero da mãe, que lhe tratava as feridas.

— Não te dói?

— Um bocadinho, mas não faz mal! — respondia, cerrando os olhos para aguentar melhor.

O pai assistia e abanava a cabeça. Não gostava que o filho aparecesse sempre assim. Todos os dias, arranjava um novo ferimento por causa da bola.

Certa vez, foi levado para o hospital, pois fez um golpe tão profundo numa mão, que teve de levar dois pontos. O Martim não se queixou das dores nem do desconforto de ser obrigado a fazer tudo só com uma mão durante uns dias. Pelo menos, tinha lesionado a esquerda. Se fosse a direita, é que seria o cabo dos trabalhos, como dizia o avô. O pai decidiu que era altura de parar com aquela loucura pelo futebol e proibiu-o de jogar durante um mês.

— Não é justo! — protestou, em vão, o Martim. E fechou-se no quarto, onde ninguém o iria ver a chorar.

À noite, quando o foi deitar, a mãe, passando-lhe a mão pelo cabelo, consolou-o:

— O pai fica preocupado contigo, tem medo de que te magoes a sério. Viste o estado em que ficou a tua mão? Tenho a certeza de que te doeu bastante.

— Só um bocadinho…

— Até aqui, magoavas-te nas pernas e nos braços, mas desta vez a mão ficou em muito mau estado.

— Só um bocadinho… Já está quase boa. Eu quero jogar, mãe. Sem o futebol a escola é uma tristeza… — lamentou-se, fazendo beicinho.

A mãe sorriu, aconchegou-o e deu-lhe um beijo na testa.

— Dorme bem.

O Martim demorou a adormecer e, quando finalmente conseguiu, sonhou que voltava a jogar futebol com os amigos.

Mas, na realidade, não jogou, não podia. Nos intervalos, para se entreter, folheava um livro que a mãe lhe dera sobre os ídolos do futebol. Como ainda sabia ler muito pouco, distraía-se a observar as imagens. Sempre ficava menos difícil ver os colegas a jogarem e a divertirem-se.

O mês que o pai decretara passou e o Martim, depois de muitos avisos, lá pôde voltar a jogar. No início, tinha cuidado, tentava evitar as quedas, mas com o passar do tempo, voltou a entregar-se por completo ao jogo e os arranhões e esfoladelas regressaram. De cada vez que o pai o ia esperar, encolhia-se todo, pois receava novo castigo, o que acabou por acontecer, quando um ferimento mais grave fez infeção e demorou a cicatrizar.

Entre os ralhetes do pai e os consolos da mãe, o Martim andava triste. Queria jogar, só pensava nisso.

Um dia, o avô foi buscá-lo à escola. O Martim ficou muito feliz com a surpresa. Ele      sabia o que se passava com o neto, por isso, levou-o até ao parque da cidade e sentaram-se a lanchar numa das mesas no meio do arvoredo.

— Sabes, Martim, és igual ao teu pai. Ele também adorava jogar futebol.

— A sério? Então por que não me deixa jogar?

O avô baixou a cabeça, franziu o sobrolho e confessou:

— Eu não o deixava jogar, porque andava sempre a magoar-se. Se reparares, tem as pernas e os braços cheios de cicatrizes.

— Ele tem muitos pelos, não dá para ver bem… — disse o Martim, fazendo uma careta.

O avô riu-se.

— Tens razão, mas garanto-te que tem. Tal como acontece contigo — constatou, fazendo-lhe uma festinha nos braços —, cada cicatriz tem uma história para contar e significa que a dor foi ultrapassada, que andava a divertir-se quando se magoou, que tinha amigos…  Cada cicatriz é uma vitória.

O Martim observou os braços e as pernas. Sabia bem como se tinha magoado, esquecera a dor, mas não a diversão, a emoção do jogo, o colega que fintara, o golo que marcara… O avô tinha razão, cada cicatriz guardava uma história.

— Avô, eu quero continuar a jogar. Podes pedir ao pai?

— Acho que encontrei a solução — disse, com um grande sorriso, entregando-lhe um saco.

O pequeno abriu-o e arregalou os olhos quando nele encontrou: joelheiras, cotoveleiras e luvas. Iria parecer um astronauta, só lhe faltava o capacete, mas não se magoaria com tanta facilidade e estava disposto a tudo. Será que assim o pai o deixaria jogar? O Martim mal podia esperar para saber. O avô não duvidava de que seria o começo de uma outra história.

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AUTOR(A)
Ana Costa
Ana Costa

Ana Costa é natural de Viseu. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas Variante Estudos Portugueses e Franceses pela FLUC, conta com mais de vinte anos de experiência no ensino. Apaixonada pela vida, pela natureza e pelo bem-estar físico, mental e espiritual, dedica-se há cerca de dez anos ao desenvolvimento pessoal e às terapias naturais. É mestre de Reiki e terapeuta/ monitora nível 1 de Chi Kung. Sempre acalentou o gosto pela escrita, publicando textos num jornal académico — Letrear — criado quando era estudante e em jornais escolares de várias escolas por onde passou. Em 2004, publicou em coautoria o livro As Faces Secretas das Palavras com a editora ASA. Em 2020, participou com um poema na Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea Vol. XII – Entre o Sono e o Sonho da ChiadoBooks. Em 2021 participou com outro poema na coletânea Alma de Mar também da ChiadoBooks. Ainda neste ano, publicou o conto “Uma ponte para o passado” na coletânea Não vão os lobos voltar e o seu primeiro livro juvenil Mergulhos na maré vazia, ambos edição de autor. Está envolvida em vários projetos literários e dinamiza Oficinas de Escrita Criativa. Acredita na força da palavra escrita e no seu poder transformador.

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