Autor(a):

Carolina Fidalgo

Roupa ao Pêlo

«Ouves a água? Já cá estamos.»

Ouvia: primeiro quase nada, depois mais que tudo. Habituara os ouvidos ao ruído dos passos bruscos e aflitos dos nossos pés, às investidas de bichos armados e nocturnos, ao resfolegar das ervas altas que nos escovavam as roupas. Mas agora: água. O seu crepitar gelatinoso. Era, parecia-me, o som de coisas que se abriam.

Com mãos trémulas, começámos a despir-nos junto ao rio. As calças. Botão por botão, as camisas. E também as meias. A roupa interior.

Depressa ficámos nus. Não fora a Lua, não o veria.

Não nos tocámos. Temíamos tocar-nos. Estávamos tão perto.

Do outro lado.

«Vestimo-las já?», indaguei. Ele fez que sim. «São mais fáceis de vestir agora que estamos secos.» Assenti e abri a mochila, tapando o nariz. Comecei pelo pé esquerdo, depois o direito. Moldei as coxas. Levou algum tempo a ajustar cada dedo do pé.

Quando ficámos prontos, a água ainda corria. Preta e branca, de noite e luar.

«Eu vou primeiro, tu vens atrás. Dás-me a mão se escorregares, sim?», disse ele em surdina. Se fosse de dia, outro dia, teria reclamado um pouco de coragem. Mas era de noite, aquela noite, e a fraqueza assentava-me melhor que o que trazia vestido.

Ele aproximou-se da margem, perscrutando com os dedos a vegetação anónima. Acocorou-se antes de deslizar para dentro do rio. Segui-lhe o exemplo. Agarrei num arbusto, às cegas, até sentir espinhos silvestres rasgarem-me a pele. Apercebendo-me do que sucedera, recolhi a mão e evitei voltar a tocar nos vultos pardos em redor. 

Perdi uma perna clara, e a outra, para o banho gélido. Os pés não gostavam do solo de limo, mas quase não senti dor ao pisar os gumes rochosos. Ele estava mesmo à minha frente. O rio era estreito, contudo a água chegava-nos à cintura e a corrente era forte. Mesmo assim, resisti a dar-lhe a mão. Como seria: dar a mão.

Àquela mão.

A travessia era de meia dúzia de metros, mas esticava-se sob a pele. Ao dormir, fazia aquela passagem há meses, deixando para trás a miséria da minha terra. Era capaz de abrir mão de tudo, porque tudo era ínfimo, e mesquinho, e magoava. O luar não era forte que bastasse para que conseguisse ver o meu reflexo destrinçando-se na corrente.

Galguei uma última pedra e despi-me da água. Cá estávamos. Tanto imaginara como seria, mas era tal qual o outro lado. Para mais, verificava-me estrangeira. Fiquei envergonhada, sentindo-me seca e estranhamente mal-vestida. A maneira como ele se mexia dava a impressão de que sentia o mesmo.

Mas ainda estávamos nus. E, por isso, tirámos a roupa da mochila.

Apalpei a camisa a medo, apercebendo-me de que não conseguiria ser outra.

«Eles também usam este tipo de roupa? Não vamos deitar tudo a perder por usarmos roupas de preto?», perguntei-lhe, afogueada e consciente de que não éramos bem-vindos. Ele chegou perto e pude ver como os olhos lhe ficavam mal na cara, estranhamente fundos sob a camada de si que não era a sua.

Como um estranho.

«Roupas de preto? É roupa. Veste-te rápido antes que venh…»

A palavra quedou-se-lhe pendurada da boca escancarada, uma boca que, tal como os olhos, lhe ficava demasiado funda. Tombou para o chão, destapando o guarda na sua traseira, que com uma navalha lhe traçara o destino.

Também a mim me tomaram, por trás, abraçando a pele que me abraçava.

«Rouba-peles de merda», rugiu o guarda que o atingira. Agachou-se sobre o seu corpo e, com a lâmina, abriu-o de cima a baixo. Sob a película clara encarquilhando em pregas, a sua linda pele escura era longa e fúlgida como uma ferida.

«A quem é que as roubaram? O que é que lhes fizeram?», intimou o guarda que me agarrava, sacudindo-me, pálida, entre as mãos hirsutas.

A cara da mulher que eu matara apertava o meu rosto.

 

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AUTOR(A)
Carolina Fidalgo

Nasceu em Coimbra em 1992, mas cresceu entre a Gardunha e a Serra da Estrela. Estudou Línguas Modernas na Universidade de Coimbra, tem um mestrado em Literatura e outro em Estudos Editoriais. É professora de Português. Já morou na Escócia e na China. Agora, vive na Suécia.

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