Autor(a):

Sónia Fonseca

O voo do anjo

Acordou como tantas outras vezes quando visitava a mãe, quando ouvia os passos dela a cirandar pela cozinha. Celebrava-se o São Valentim. Hoje seria um dia diferente.

Pareceu-lhe ter escutado o padeiro apitar, haveria pão fresco ao pequeno-almoço. Deitado na cama de ferro, naquele quarto minúsculo que fora o leito matrimonial até à morte do pai, observou a luz que entrava pelas portadas de madeira ao fundo da cama. O filme da vida corria nos seus pensamentos: trabalho na lavoura desde a infância, pai alcoólico (isso haveria de o matar), emigração para o Luxemburgo, namoro com a mulher que amou toda a vida e com quem casou, filhas que tanto orgulho lhe davam e a mãe; as quatro mulheres que verdadeiramente preenchiam a sua vida. Percebeu que só elas importavam, afinal, apesar das inúmeras traições ao longo do casamento e que tinha acabado por confessar à esposa, no verão anterior.

Acabou por se levantar e vestir, antes de ir à casa de banho, aparecendo na cozinha e surpreendendo a mãe:

— Bons dias, minha mãe — a mulher vestida de negro, cabelo apanhado em carrapito pouco acima da nuca, saltou à mesa onde tomava o café. Sentada não se notava como era pequena, menos de metro e meio, mas tinha garra. Passara por muito e a demência começava a dar sinais.

— Bons dias, meu filho. Já estás vestido? Queres que prepare o teu café? — disse, meio assustada, mas a sorrir. Era o único filho, o seu bem mais precioso.

— Sim, por favor. Vou só à casa de banho, não demoro. – Continuou a atravessar a curta distância, para se aliviar.

Ouvia o som dos animais no pátio, que entrava pela janela. A mãe iria tratar deles a seguir. Abriu a torneira, para lavar as mãos e a cara, sentiu a água gelada a cortar-lhe a pele, mas estava habituado. Era normal naquela altura do ano.

Ao fechar os olhos, para receber a água no rosto, viu imagens suas, da mãe e das filhas naquele mesmo lugar, quando ainda era galinheiro. Os tempos em que usavam o penico durante a noite e se aliviavam num canto do pátio, durante o dia, enquanto enxotavam as galinhas.

Sorriu, ao lembrar as filhas a correr atrás delas, o orgulho que sentiu quando a mais velha foi capaz de cortar o primeiro pescoço de uma e ajudar a depenar o animal para ser cozinhado; quando, à mesa, estava vaidosa, porque tinha ajudado a preparar a refeição em todos os passos. Os coelhos é que ela não queria matar, fugia e chorava quando ele pegava num para lhe dar a pancada final.

Dirigiu-se à cozinha e a mãe serviu-lhe o café feito na cafeteira, negra de estar ali no borralho, razão do sabor ímpar. Recebeu o papo-seco, com queijo de cabra, que a mãe lhe estendeu. Sentiu-se reconfortado quando acabou de comer.

Vestiu-se, para ir dar uma volta aos terrenos, de trator. Abriu o portão verde, depois de pôr a máquina a trabalhar e o cão, no pátio, começou a ladrar, pedindo para ir também. Uma última vez.

Ao regressar, a mãe não estava. Devia ter ido a casa de alguma vizinha, como era costume. Prendeu de novo o cão no pátio e deu-lhe mais água e comida.

Entrou pela cozinha e foi até à adega. Subiu a escada de cimento, depois os três degraus que levavam ao piso de madeira, frágil. Sorriu ao lembrar-se do medo que a miúda sentia cada vez que ali ia. Parecia que pressentia, há anos, o que ali teria lugar.

“A corda já está presa na trave. Tem comprimento suficiente para chegar lá abaixo e fazer o nó final.”, pensou.

Desceu, para agarrar a ponta da corda, presa no atrelado do trator. Usou as mãos para medir e dar o nó firme, que iria deixar deslizá-la até segurar o seu corpo, suspenso. Colocou o laço no pescoço e ajustou-o, sentindo um nó na garganta, temendo o fracasso. Subiu para a trave. Abanou tanto que parecia quebrar-se. Mas não. Desequilibrou-se. O corpo estremeceu com a falta de ar e as mãos agarraram-se à corda, na tentativa vã de a tirar. Tarde demais. O peso do corpo suspenso provocou um estalo na cervical. Sangue escorreu pelas narinas até ao chão.

“Afinal, resultou!”, pensou ainda. O rosto frio e triste. Era apenas só uma tentativa.

“Filho, o que fizeste?”, chorou a mãe, ao ver o corpo do seu tesouro suspenso.

O sangue no chão. A corda cortada. Os únicos vestígios físicos que a miúda veria, além do seu cadáver no caixão. O rosto tão triste. “Nos braços do anjo havia conforto e amor. Pai, o anjo voou e só a recordação ficou”.

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AUTOR(A)
Sónia Fonseca

Sónia Maria Fonseca nasceu em 1977, na cidade de Coimbra, mas é nos arredores de Lisboa que vai viver a sua vida. É na Escola Secundária de Odivelas que vai dar os primeiros passos na escrita, ao vencer o concurso literário 2 anos seguidos, primeiro em prosa e o segundo em poesia.

Ao entrar na faculdade, segue Turismo para surpresa de todos, talvez influenciada pelas viagens de fim de semana em família e a escrita torna-se algo esporádico. Depois de muitos anos a colocar de lado a sua paixão profissional, é já perto dos 40 anos que resolve abraçar a profissão de Guia Intérprete Nacional e dar uma reviravolta à sua vida. A pandemia e a total paragem do Turismo levou a nova mudança e mais tempo livre, permitindo dedicar-se a algo esquecido: escrever! Procurou aprender com quem sabia e queria ensinar, assim como outros que estava na mesma situação, além de começar a deixar passar para o papel as histórias que fervilhavam na sua cabeça.

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