Autor(a):

João Melo

Diário do amor

I

 

Hoje disseste-me: quero-te, mas não te quero; melhor, não te quero querer.

Eu pensei (mas não cheguei a responder-te):

– Isso é um oxímoro imperfeito.

 

II

 

Citaste Marguerite Yourcenar: “O tempo, esse grande escultor!”, para me pedires que aguarde que floresçam as flores e os frutos que te proponho.

Eu, precavido, decidi: preciso de alimentar o tempo. Todos os dias.

Para que ele nos seja propício.

 

III

 

Dizes: preciso de ser translúcida. Iluminada por dentro, tal como (digo eu) brilha em mim a tua presença, cálida e sedutora luz à qual quero recolher-me eternamente.

Tranquilo, aguardarei que estejas pronta a acolher-me.

Quero-te inteira, como és: com tua liberdade, tua surpresa, teus desejos, teus medos, tuas dúvidas, tua oculta fúria de carne, mel e riso.

Não receies o caminho que se abre para nós, espanto que só tu e eu poderemos decifrar e construir.

 

IV

 

O amor será a ficção que quisermos. E tornar-se-á realidade.

Concreta como um sonho indestrutível,

a alimentar diariamente, de mãos dadas, como se fôssemos

um só.

Até

sê-lo.

 

V

Peço-te:

enterra todos os passados; esquece

todos os limbos inconclusos.

 

Humilde, evitarei os buracos dos caminhos que nos desafiam,

assim como prometo proteger-te

das insidiosas armadilhas que, como pesadelos,

te assombram.

 

Oh, mulher que desde sempre aguardo, não hesitemos

em atravessar a imensa e doce clareira

que se abre à nossa frente.

O seu destino

é

a eternidade.

 

VI

 

Respeito o teu silêncio. Na verdade,

ele mantém-me vivo e amoroso.

 

Quando me levanto

e me apronto

e caminho pelas inevitáveis e necessárias veredas

do tempo e da vida,

oiço os seus rumores, imperceptíveis, mas

claros e inteligíveis.

 

É assim que o meu coração escuta o teu silêncio:

ao mesmo tempo temeroso

e cheio de uma esperança vital.

 

 

VII

 

Hoje não te mandei um beijo falsamente matutino

a desejar-te bom dia quando o sol já ia alto.

 

Hoje não recebi nenhuma mensagem tua para saber de mim,

embora não seja essa a pergunta que habitualmente me fazes;

aliás, não me fazes pergunta nenhuma,

apenas envias o emoji de uma flor muito vermelha,

que se abre quando a toco, como um aguardado e intenso pecado.

 

Hoje não te liguei pelo WhatsApp

apenas para ouvir a tua voz, mesmo sabendo

que não atenderias,

pois estavas ocupadíssima a tentar salvar alguma coisa,

visto que a nação,

sobranceiramente,

se recusa a ser salva.

 

Hoje não visitei o teu mural,

para ver se acaso me tinhas deixado uma mensagem cifrada,

que seguramente eu não compreenderia.

 

Hoje, confesso, fiz apenas uma coisa: pensei

em ti.

 

É pouco? É muito?

 

Ó mulher trazida pelo tempo para resgatar-me das suas falsas certezas,

só tu o podes dizer.

 

VIII

O verdadeiro amor

ou dura para sempre ou acaba assim: antes de começar.

 

O amor que te tenho, contudo,

mais do que verdadeiro,

é único.

 

Por isso, se dizes que não me amas, o que posso eu fazer?

 

Continuar

a amar-te.

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AUTOR(A)
João Melo

João Melo nasceu em 1955 em Luanda, onde mora. É escritor, jornalista, publicitário, professor universitário e consultor. Membro fundador da União de Escritores Angolanos, de que foi secretário-geral e presidente. Membro fundador da Academia Angolana de Letras.

Foi deputado e ministro. Como escritor, tem-se dedicado ao conto, crónica, poesia e ensaio. Publicado em Angola, Portugal, Brasil, Itália e Cuba. Tem textos traduzidos para inglês, francês, alemão, húngaro, árabe e mandarim. Está representado em várias antologias de poesia e de contos, em Angola e no estrangeiro. Em 2009 recebeu o Grande Prémio de Cultura e Artes, categoria de literatura, pelo conjunto da sua obra.

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