Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento
Vale a pena ter nascido
Alberto Caeiro
De instinto primário, o ato de ouvir eleva-se à mais refinada aferição da realidade. Na barriga, o melhor é escutar as batidas do coração da mãe e se embalar no mantra ancestral. Como alimentar, ouvir é digerir sons, palavras, ruídos, fragmentos, coerências… O sistema auditivo faz a magia de identificar vozes, músicas ou sons familiares no meio de ambientes barulhentos. É o cérebro encurtando caminhos conhecidos para facilitar o automático das coisas.
As sonoridades audíveis podem ser voláteis e firmes. Há palavras que voam e ficam. Há palavras-pedra que atingem em cheio. Impossível desescutar. O sonido apaixonado, leve e gracioso, ganha uma dimensão emotiva, que invade a pele e chega ao coração rapidamente, algumas vezes com erro na tradução, tamanha a cegueira do encantamento. O ouvido testemunha paixão e sonhos. A zoada raivosa planta mágoas e entorpece a interlocução. O ouvido testemunha dissabor e ressentimento. Cecília Meireles, em seu Cântico XII, diz “sê o que o ouvido nunca esquece” e afirma que sejam coisas eternas e não as “palavras dos homens”. Ela sabia o que as “palavras com vida humana” podem fazer.
“O melhor é ter ouvidos e ouvir bem os sons que nascem”, disse Alberto Caeiro. Deste nascimento, sentimos o desabrochar e, se a nutrição for saudável, permanecemos. Os sons de um piano ou de uma flauta são convites para fazer morada e os mistérios do sitar, instrumento sagrado criado por Shiva, fazem os olhos fecharem-se para sentir a vibração de cada nota. É a suavidade amorosa de um sentimento sublime que invade o presente.
Há quem ouça e não escute. Percebemos nos diálogos comuns esta frequente indelicadeza, onde quem fala é apenas ouvido de forma intolerante, obtendo um comentário a seguir, geralmente egoísta. É a audição sem empatia e respeito pelas palavras e sentimentos do interlocutor. Rubem Alves pensou oferecer um curso de Escutatória, mas receia que ninguém se matricule, pois “escutar é complicado e sutil”, no entendimento do autor. Ele também afirma que a nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante da arrogância e vaidade humanas.
A pensar nas coisas eternas para os ouvidos, cheguei ao silêncio. O nascimento de todas as coisas, o mundo, a música, nós e as entrelinhas. O insigne silêncio do poder da escutatória, o que absorve, pondera, compreende e discerne.
Escutar o silêncio de fora é imprescindível, pois sinaliza que há o silêncio de dentro, cultivado pela atenção. Neste estado de presença, é a alma quem escuta e é possível ouvir o inatingível, pois ela é soberana e eterna. Silenciar é a sabedoria de mão dada com a humanidade, é quando conseguimos realmente discernir as coisas e chegar ao essencial.
“Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,/ E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme” era um desejo de Alberto Caeiro, viver livre dos ruídos e barulhos da desatenção. Rubem Alves, em comunhão com o poeta português, entende que Deus é a beleza que se ouve no silêncio.
Viver a temperança guiada pela presença faz escutar e discernir o que nos nutre. Escutar o silêncio dentro da alma faz viver a sabedoria do discernimento. Eis a melodia perfeita da infinita eternidade.