Tudo é movimento. A natureza, a terra e nós. Cruzamo-nos com outras pessoas, vidas alegres, ou tristes, angustiadas, doentes, mas marcadas pela interrogação. Um rosto não mostra tudo.
O sol entra pelos vidros das janelas, a luz da vida em contraste com o frio de um sepulcro que sente no peito. Na mão, ainda segura o telefone. A conversa terminou, mas a sua raiva está em crescendo.
Está sentado numa poltrona junto à janela. Pela vidraça aberta entram notas harmoniosas, resultantes de uma conversa entre o violino e a Beatriz.
O homem fica ali a olhar para o jardim, cuidado, verdejante, com apontamentos multicores. Uma paisagem de conto de fadas, mas a princesa deste castelo não viverá feliz para sempre. O homem levanta-se. Além da raiva, a resolução é outra força que emana do seu corpo. Os monstros também podem ser heróis e salvar inocentes.
*
Da saída da estação de metro brotam pessoas como milho numa panela quente. A quantidade de gente que emerge de um só comboio é impressionante
Uma jovem segue ligeira para não se atrasar. Hoje é dia do supervisor ir à loja, não pode haver demoras. Ainda o relógio não bate as 8h30 e já ela se encontra no seu local de trabalho.
Preparou tudo e aguardou. O Sr. Agostinho faz a sua vistoria, elogia o empenho de Joana, entrega-lhe a notificação da ida à medicina do trabalho e despede-se até à semana seguinte.
A loja tem todo o tipo de artigos que conhecemos das casas dos nossos avós. Ali são considerados vintage, com preços modernos. Durante a tarde, uma rapariga que aparenta ter vinte e poucos anos, de sorriso afável, observa algumas peças e demora-se junto a uma flauta exposta.
Joana termina o atendimento de um casal francês e vai ter com a jovem, oferecendo-lhe ajuda, o que ela declina, ficando mais um pouco, a admirar o instrumento no estojo até se ir embora.
*
As notas musicais transportando luz, vida e amor calam-se. Num ímpeto, corre até ao quarto da filha.
— Beatriz, estás bem?
— Sim, pai. Porquê?
— De repente paraste de tocar.
— Veio-me à cabeça uma flauta que vi numa loja. Parecia-se com a da mãe. Por vezes imagino como seria tocarmos juntas.
— A tua mãe teria adorado.
De fora é um pai abraçado à filha, por dentro as sombras imorais agitam-se.
*
Os dias de Joana parecem iguais: casa, trabalho, regresso a casa e, pelo caminho, visita à sua vizinha do segundo andar. Uma senhora de setenta e oito anos, com uma prótese na anca e dificuldades de mobilidade, que vive sozinha. Seja para lhe levar compras ou apenas saber dela, estes momentos trazem alegria a ambas, apaziguam a solidão de uma e a saudade de outra.
Naquela tarde foi diferente. Ao passar na mercearia com o intuito de se abastecer de legumes, Joana conheceu Gaspar, o novo repositor do estabelecimento comercial. Trocaram palavras e olhares.
Nos dias seguintes as compras passaram a ser mais demoradas, entre aquisição de bens e cumplicidades de jovens.
Joana estava completamente enamorada. Gaspar, um rapaz gentil e educado, levou-a a almoçar num restaurante indiano e depois a dar um agradável passeio. Nos seus pensamentos, ele era simplesmente lindo de morrer. Como tantos outros casais a caminhar perto do rio, também eles trocavam carícias, opiniões e sonhos. Ele contou-lhe que estudava com o objectivo de se tornar um fazedor de fantasias, traduzindo-se em efeitos especiais para cinema e televisão. Um dia resolveu levá-la a ouvir um concerto no conservatório.
No pequeno palco estava somente uma rapariga de cabelos negros, sentada a tocar violino. Gaspar exibiu uma expressão de deleite enquanto Joana se mostrou alheia.
— Gostaste?
— Sim, ela tocou muito bem.
— A sério? Ela é fantástica! Não gostas deste tipo de música?
— Só não estou muito habituada a ouvir e estranhei que ela estivesse sentada.
— É porque está doente e ficar um período longo de pé a tocar seria penoso.
Joana ficou a pensar que deveria ter sido mais gentil ao falar da violinista e que, da próxima vez, deveria demonstrar mais entusiasmo por algo de que ele gostasse.
O que ela não viu, perdida nas suas divagações amorosas, foi a expressão de desprezo de Gaspar. Talvez se a tivesse visto pudesse vir a ser diferente.
*
Entra na adega escura e tira as luvas das mãos. É-lhe difícil adaptar-se à escuridão. Aperta o couro na mão esquerda, coração irregular, enquanto vai a tatear com a direita. Cinco, seis, sete, vazio, curva e lança os dedos exploradores. Sente a pedra rugosa, meio molhada, fiapos de teias negras de sujidade. Coragem, a recompensa está ao alcance. O odor de vinho, madeira, trabalho, vida e desespero penetram na roupa e na carne. As solas fazem-se anunciar a cada avanço, quebrando o silêncio imperativo.
Sente o fim, toca e volta a seguir à direita, como lhe disseram, mais barris. Ao fundo, as mãos encontram o ferrolho da porta. Roda-o e o seu clamor é alto. No interior algumas velas e ele, à espera. A jovem, com uma respiração de desejo e antecipação, aguarda o encontro com o abraço, o beijo e a seringa que tem encontro marcado com o seu pescoço
Decorreu um mês e o destaque dos jornais já não é uma jovem desaparecida, mas a recuperação da filha de um empresário. A talentosa violinista foi submetida a um delicado transplante de fígado e recupera bem.
Um rosto não mostra tudo. Por baixo escondem-se sombras, moral, imoral, alma e morte. A distinção está na percepção individual.
Nota: por desejo da autora, este conto não segue o Acordo Ortográfico de 1990


