Precisamente seis anos antes, no mês de março de 1803, morrera o seu adorado Francesco, vítima da febre tifoide. Luísa vivia, desde então, abalada pela angústia dessa perda e pela impossibilidade de voltar a atuar em público enquanto viúva. Apenas alguns meses antes da morte do marido, a sua última atuação, no Teatro São João, fora um sucesso. Agora restava-lhe representar o papel de viúva. Inconformada, decidira adotar o luto para o resto da sua vida, como se representasse eternamente o papel da soprano do Requiem de Mozart. Continuava a ser vista em público nos concertos que frequentava, vestida inteiramente de preto – incluindo o chapéu, a sombrinha, a bolsa e o lenço, tudo no mesmo tom. Usava um véu cobrindo o rosto ao sair de casa, o que não escondia o seu riso fácil e feito de acordes luminosos.
Tinha renunciado a exibir as suas preciosas joias, que ocasionalmente admirava, espalhando-as sobre a colcha da cama e fazendo-as brilhar sob os raios de sol que entravam pela janela. Os brincos, o colar e a tiara de diamantes, presentes de Catarina da Rússia durante a sua estadia em São Petersburgo, deixavam o público fascinado, nos diversos palcos de ópera que tinha pisado. Ainda mais maravilhados ficavam assim que começava a cantar, com a sua voz vasta e inconfundível, como era descrita nos jornais da época. Na intimidade do quarto, cantarolava árias que tinha interpretado, revivendo memórias da sua carreira internacional.
Mas naquela manhã, véspera de Quarta-feira de Cinzas, o ruído da rua abafava as suas recordações musicais. Os sinos das igrejas do Porto tocavam a rebate. Ouviam-se passos apressados na calçada e vozes aflitas evocavam preces.
A cavalaria francesa estacionava num acampamento próximo da cidade e os canhões ribombavam ao longe. As forças portuguesas iam resistindo como podiam nas baterias e muros do lado norte da cidade, mas todos sabiam que os defensores eram poucos frente aos atacantes franceses.
No dia anterior, no átrio da igreja, as conversas pressagiavam o desastre iminente:
— Estes demónios franceses não têm em consideração que estamos em plena Semana Santa! Declararam um ultimato dizendo que, se não nos rendemos até dia 28 de março, invadem a cidade. Entretanto, saqueiam e pilham todos os lugares por onde passam. Fazem vítimas do seu furor, velhos, crianças e mulheres.
Temendo pelos filhos pequenos, Luísa correra para casa. Tinham de sair da cidade. Agora, sem proventos dos espetáculos, as suas poupanças eram fundamentais para viver dignamente. E as joias, de valor incalculável, não as podia deixar roubar pelos franceses.
Luísa chamou a criada e pediu-lhe para arrumar algumas roupas numa bolsa.
— Temos de fugir, — disse com firmeza — estamos em perigo aqui.
— Para onde, minha senhora? Seremos encurraladas pelos franceses.
— Atravessaremos o rio para Gaia, não temos outra opção.
Dormiram uma última noite na casa da rua Chã. Luísa sofria com a ideia que teria de abandonar alguns dos pertences mais queridos, tais como o piano e o violino, que pertenceram a Francesco. Consolou-a abraçar os corpos mornos dos filhos, que nessa noite adormeceram com ela na mesma cama.
Na manhã seguinte, quando desceram à rua, Luísa, a criada e as crianças misturaram-se à multidão em fuga, que saturava as ruas num fluxo contínuo em direção ao rio.
As tropas francesas tinham cumprido o ultimato e, rompendo as defesas portuguesas pela madrugada, avançavam pela cidade, trovejando fogo de artilharia.
O medo sangrava os portuenses para Gaia, todos se dirigiam para a Ponte das Barcas, composta por vinte barcas amarradas por correntes de ferro, cobertas por um estrado de madeira. A travessia estava sujeita a portagem e naquela manhã de 29 de março de 1809, Luísa Todi era uma entre os milhares de pessoas que ali se aglomeravam para tentar passar para a outra margem. Cada pessoa a pé pagava normalmente cinco Réis, porém, naquele dia, o cobrador tentava inflacionar o preço dos bilhetes. A multidão protestava, gritando.
No cais da Ribeira, alguns barqueiros apregoavam preços exorbitantes para atravessar o rio. Luísa, com os filhos agarrados à saia, as bolsas com roupas e um estojo onde levava as joias e todo o dinheiro que tinha em casa, dirigiu-se a um destes barqueiros, não hesitando em pagar mais de mil Reis pela travessia.
A cavalaria francesa aproximava-se , rápida e perigosamente , do cais. Ouviam-se tiros cada vez mais próximos. Apavorada, a multidão empurrava-se e precipitava-se sobre a frágil ponte, em tumulto.
Enquanto Luísa tentava entrar na pequena embarcação, ouviu um enorme clamor. A Ponte das Barcas despedaçara-se com o peso das pessoas que atravessavam. Enormes fendas tinham-se aberto e os fugitivos caíram ao rio, empurrados por aqueles que vinham atrás. Luísa avistou milhares de braços que se erguiam das águas gélidas do Douro, gritando por socorro, num estertor de afogados. Um silêncio de morte cobriu o rio, logo interrompido pelo tiroteio cruzado dos franceses e dos nacionais.
Horrorizada com a catástrofe que presenciara, Luísa instalou desajeitadamente os filhos no barco e suplicou ao barqueiro que partisse com rapidez. Este retirava a âncora, quando a filha mais velha de Luísa deu um grito de dor, agarrando-se a um joelho sangrante. Fora atingida por uma bala perdida. Luísa levantou-se, tentando socorrê-la, mas a ondulação do rio fê-la cambalear e cair à água. Em grande aflição, sabendo que a patroa não sabia nadar, a criada estendeu-lhe um remo do barco, salvando-a. No entanto, Luísa acabara de perder no Douro todos os pertences preciosos que transportava com ela.
Encharcada e desesperada, deu-se conta de que não podia continuar a fuga com a filha sangrando da ferida e decidiu descer a terra, deixando-se capturar pelos soldados franceses. Engolindo o orgulho, acenou para os soldados que estavam no cais, pedindo-lhes ajuda.
— Au secours, au secours! S’il vous plait, aidez nous!
Os soldados, surpreendidos por a ouvirem num francês perfeito, acorreram, diligentes.
— Madame, êtes vous française?
— Non, je suis portugaise mais je vous demande de aider ma fille, elle est gravement blessée a la jambe.
A cavalaria napoleónica avançava em direção ao rio, cruzando-se com a família de Luísa. Do alto da sua montada, um oficial vestido com o elegante uniforme de Marechal, observou o pequeno grupo e estacou, dirigindo-se a Luísa:
— Luísa Todi! Êtes-vous “La chanteuse de la nation”? Je ne crois pas à mes yeux! La Prima-Dona! Vous êtes lá!
Surpreendida por ter sido reconhecida, fitou o interlocutor de olhos arregalados e, depois de instantes, conseguiu responder:
— Oui, c’est moi.
Percebeu que estava face ao temível Marechal Soult. Ele apresentou-se amavelmente e disse-lhe que a tinha ouvido cantar no Teatro das Tulherias, anos atrás, tendo ficado maravilhado com a sua voz. Que nada receasse, porque nenhum mal lhe iria acontecer. Que a tomaria sob sua proteção pessoal, como convidada na residência oficial, o Palácio das Carrancas, até que a filha recuperasse do ferimento.
O cenário em redor era desolador, os gritos dos fugitivos continuavam a ouvir-se e chamas consumiam uma carroça a poucos metros dali, levantando uma espessa nuvem de fumo. Mas nada disso parecia afetar o Marechal, que continuou a discorrer sobre música:
— Quel plaisir de vous avoir rencontrée! Quels beaux souvenirs! Ah, la musique nous donne une âme! Je me souviens bien de vous écouter chanter!
Descendo do cavalo para a cumprimentar de beija-mão, despediu-se, deixando-a aos cuidados de soldados de confiança.
Estes, vendo-a tiritar de frio, ofereceram-lhe uma manta e guiaram o pequeno grupo em direção a uma enfermaria improvisada, montada numa esquina da rua do Comércio.
Enquanto subiam a rua, Luísa ocultava o rosto nos cabelos da filha que levava ao colo, evitando ver os mortos caídos nas bermas, chacinados pelos invasores. A criada, que caminhava a seu lado, com os outros filhos pela mão, lançou-lhe um olhar de relance, incapaz de conter as lágrimas. Luísa sabia que traía os compatriotas por ter recebido proteção dos franceses. Contudo, ao sentir o vestido da filha encharcado do sangue que lhe escorria da perna ferida, não hesitou e acelerou o passo, seguindo os soldados que a escoltavam.
Alguns dias depois, às oito da noite, o Palácio das Carrancas estava com a porta cocheira aberta, iluminada com tochas, para receber os convidados da receção oferecida pelo Marechal Soult. O fogo na escuridão da noite iluminava o céu e projetava na calçada as sombras das almas dos mortos dos dias anteriores.
A Orquestra de Câmara começou a tocar quando o Marechal entrou no salão, cumprimentando atenciosamente cada convidado, entre os quais estava Luísa. Ela escutava a música que amava, ecoando por entre os candelabros, no salão de lambris de carvalho e soalhos atapetados do Palácio. Sentia um misto de revolta e prazer que a fazia apertar o lenço de seda entre os dedos, contendo as palavras.
— A felicidade de alguns está sempre ligada à vitória sobre outros — segredou-lhe um aristocrata portuense, que fazia parte, como ela, do grupo de portugueses oportunisticamente convidados do Marechal Soult.
— Adivinhou os meus pensamentos. E a nossa liberdade está sempre presa à vitória de alguém — respondeu-lhe Luísa ao ouvido.
Tlim, tlim, tlim… ecoou a colher de prata, batendo num copo de cristal para chamar a atenção dos convidados para o discurso oficial do Marechal.
— Primeiro, quero agradecer a presença de todos e pedir um brinde em honra do exército francês, que veio trazer a grandeza do Império a Portugal — disse em voz alta, provocando os aplausos e o tilintar dos copos. — Antes de finalizar, levantemos também um brinde a uma convidada muito especial que temos o privilégio de ter entre nós, a Prima-Dona Luísa Todi que nos agraciará com a sua voz maravilhosa, cantando uma ária da ópera Orfeu.
Todos levantaram então um brinde a Luísa.
Em seguida, Luísa cantou, enchendo a sala de intensa emoção. O Marechal olhava-a, enlevado. A voz da cantora ressoava nele e interpelava-o, transportando-o para longe dali, rompendo os limites do tempo e do espaço, para um lugar sem História e sem conflitos.
Io la Musica son, ch’a i dolci accenti so far tranquillo ogni turbato core, ed or di nobil ira, ed or d’amore posso infiammar le più gelate menti. (1)
Luísa sentiu o poder da música libertar-se e ganhar vida, como uma chama no olhar do Marechal. Ficou maravilhada com a facilidade que ainda tinha em exercer o seu dom, após os anos de pausa. No entanto, ela sabia que o tempo de uma ária não era suficiente para alterar o coração do Marechal, inflamado de triunfos bélicos. Quando a sua voz se calasse, a opressão e a indignação permaneceriam, num lamento infindável pelos seus compatriotas caídos na Ponte das Barcas. Aquele dia, manchado de gritos, nunca o poderia esquecer. Pensou para si mesma, tenho de partir daqui, libertar-me da lisonja e dos favores destes carnífices. Sentiu náusea e esvaiu-se em lágrimas enquanto cantava, acabando por fugir da sala, com todos os olhos postos nela.
Nota: Dias depois, Luísa partiu com a sua família para Lisboa, onde viveu o resto dos seus dias, passando por grandes dificuldades económicas.
(1) Tradução: Eu sou a música, que com doces frases/ sei acalmar cada coração inquieto/ e por nobre cólera, e por amor/ posso acender as mentes mais gélidas. (Orfeu de Monteverdi )


