Naquela manhã de agosto, o relógio marcava os segundos com uma lentidão cortante. O tempo avançava, indiferente, mas o ar carregava um peso inominável.
– A tua mãe ainda não se levantou – disse o meu marido, lançando-me um olhar preocupado, enquanto o ronco grave da máquina de café e o miar insistente da Mikas preenchiam a cozinha.
Não era normal.
Por volta das dez, ela já teria tomado os medicamentos e estaria a preparar o pequeno-almoço. Sentávamo-nos juntas à mesa, rodeadas pelo ruído dos talheres contra os pratos e pelo leve crepitar do jornal que ela folheava com uma ternura quase religiosa. Era o nosso ritual, um momento em que o tempo parecia parar.
Percorri o corredor com passos incertos. Ao abrir a porta do quarto, o ar pareceu denso, como se a luz hesitasse em entrar pelas persianas que levantei num gesto automático.
– Mãe, hoje não te levantas? – perguntei, a voz a dissipar-se no vazio.
Ela estava deitada, os óculos no rosto, o telemóvel ainda seguro na mão. Parecia apenas a descansar, mas a quietude desmentia o dia.
Contornei a cama com passos lentos. O coração batia desordenado, destoando da calma opressiva que pairava no ar. Toquei-lhe no rosto. O frio subiu-me pela mão como um punhal de gelo, um frio que não se dissipa, que não pode ser negado. A minha garganta apertou-se num nó.
Chamei pelo meu marido, a voz fragmentada, mais lamento do que súplica. O eco espalhou-se pela casa, e apenas o silêncio lhe respondeu. Somente o relógio continuava a marcar os segundos, imperturbável.
Sentei-me ao lado dela, o corpo pesado, as mãos a tremular ao segurarem as suas. A pele rígida, o contraste com o calor dos meus dedos, feriu-me como uma verdade impossível de afastar. O vazio invadia o quarto, carregando uma presença imensa, insuportável.
Olhei para o seu rosto tranquilo, os óculos ainda firmes no lugar, como se, num instante improvável, ela pudesse acordar e perguntar: «Que foi? Ainda estou aqui, não vês?».
Mas já não estava.
Mesmo assim, segurei-lhe a mão, iludindo-me com a ideia de que o contacto pudesse desfazer o abismo. O som dos segundos desvaneceu-se, cedendo espaço a outro, distante e hipnótico: o mar.
Num instante, estava na praia. Os nossos passos fundiam-se na areia molhada, apagados suavemente pela respiração das ondas. Às vezes, ela parava, inclinava a cabeça como quem ouve segredos antigos. «O mar leva o que não precisamos e devolve o que importa», murmurou certa vez, enquanto olhava o horizonte, absorta numa conversa muda com o oceano.
As suas palavras pareciam escritas na espuma, levadas e trazidas pelas ondas. Agora, a batida do tempo arrancava algo de mim. A cada onda, uma ausência; cada tic-tac, um eco.
O som do relógio trouxe-me de volta ao quarto, onde os ruídos da casa permaneciam suspensos. O telefone, outrora vibrante com as suas conversas, repousava mudo.
Recordei o riso contagiante e o timbre animado da sua voz enquanto falava ao telefone com as amigas. As risadas que alastravam pela casa e os comentários simples, mas cheios de perspicácia, enchiam o ar de alegria.
Lembrei-me do dia em que recebeu o diagnóstico, exatamente um ano antes. O médico falou de forma direta:
— É um aneurisma na aorta. A cirurgia seria o caminho mais seguro. No entanto, tem riscos elevados.
Esperei um instante de hesitação. Ela respondeu de imediato:
— Já passei por três operações, doutor. Não quero arriscar!
No exterior do hospital, o calor de agosto impunha-se com um peso maior do que o habitual. Ajeitou os óculos e, por um momento, ergueu o olhar para o céu, como quem conversa com algo que apenas ela compreendia. Depois, voltou-se para mim com um sorriso tranquilo:
— O tempo faz o que tem de fazer.
Avançou com serenidade, enquanto eu permanecia atrás, carregando o peso de uma escolha que nunca me pertenceu.
Não foi a primeira vez que a vi enfrentar o destino. Mesmo com a cadeira de rodas à espera, a minha mãe desafiou a fatalidade. Cada passo que deu ao reaprender a andar e cada curva do corpo no ioga eram vitórias contra o inevitável.
Aprendi com ela que a aceitação pode ser um gesto de coragem. Mesmo quando tudo parecia prestes a ruir, a minha mãe mantinha o equilíbrio: os passos eram lentos, mas firmes; os gestos, suaves, mas resolutos. Assim, ela compunha a sinfonia da sua vida.
No funeral, o caixão desceu à terra, o ranger das cordas um grito contido, áspero, expondo uma dor que eu não conseguia esconder. O impacto das pás marcava o fim.
Agarrei o ramo com mãos trémulas, os dedos a roçarem as delicadas texturas ainda impregnadas do perfume do jardim. Eram as flores de que ela cuidava com amor e paciência, cada folha testemunha de dias calmos e dedicados. Apertei-as contra o peito, cada pétala que caía levava um fragmento do meu ser. Quando as soltei, foi como dizer um adeus que ainda não sabia pronunciar.
A última pá de terra caiu com um baque surdo, abafado pelo vento, como se o mar tivesse vindo reclamar o fim.
A sua presença não desapareceu, espalhou-se. Está no compasso do relógio, no murmúrio das ondas, no som distante de uma risada que já foi tão familiar. A ausência é cheia de ecos, e, a cada batida do tempo, ouço-a sussurrar «Ainda estou aqui».


