Autor(a):

Ana F. Pinheiro

O Som da Culpa

Naquela noite, no seu laboratório, Leonardo desmontou o Reasom peça por peça, enterrando o sonho científico para proteger algo mais importante: a verdade e a pessoa que amava.

O laboratório era o seu templo. Passava horas e horas a aperfeiçoar uma invenção que vinha desenvolvendo desde o primeiro ano que cursou Ciência e Astrofísica. A relação entre as ondas sonoras e as emoções humanas era algo que o fascinava. Cedo deu um nome à sua criação: Reasom. Todos os dias lhe falava, enquanto o afagava.

— Meu querido Reasom, estás quase pronto. Tenho a certeza de que juntos vamos revolucionar o mundo. Havemos de contribuir para a justiça mundial.

Leonardo era acérrimo defensor da justiça. Acreditava que, por mais ínfimas que fossem as provas, nenhuma infração poderia ficar sem culpado. Lembrou-se de criar um dispositivo que captasse as frequências emocionais residuais deixadas em locais de alta tensão, como um cenário de crime. Caso funcionasse, seria a solução do século e um suporte nas investigações policiais.

No último ano de faculdade, foi convidado a apresentar a sua invenção. Perante um auditório repleto de curiosos, após ter sido anunciado como a revelação do ano, discursou, olhando as caras que o fitavam, esbugalhadas:

— Todo o crime tem uma frequência emocional — explicou. — Culpa, medo, raiva, todas as emoções libertam marcas vibracionais no ambiente. Com o Reasom é possível ouvi-las, traduzi-las e chegar ao autor das mesmas. É como uma impressão digital.

No final da sua intervenção, foi ovacionado de pé. Depois, começaram a aparecer os mais variados convites para trabalhar com o Reasom em pequenas investigações policiais: furtos, agressões, até disputas conjugais. Mas Leonardo sonhava alcançar mais com a sua invenção. Crimes grandes, de sangue, ocupavam o topo das suas preferências.

— Amor, nem imaginas o que acabou de acontecer — Mélanie era a imagem do pânico quando lhe abriu a porta de casa.

Abraçou-a longamente, sentindo-lhe a nuca arrepiada.

— Chamaram-me à polícia. O hospital suspeita que a morte da minha avó não foi natural. Encaminhou o caso para as autoridades. Tenho de ir prestar declarações.

— Mas como? A tua avó estava acamada há anos. Não pode ser… Quando tens de ir ao posto?

— Agora. Vim pedir-te se me podes acompanhar.

— Claro que sim, meu amor. Quem sabe até os posso ajudar. Já colaborei com as autoridades em tantos casos, mas este é especial. Vou buscar o Reasom.

Mélanie interrompeu-lhe a marcha:

— Espera! Achas mesmo que é necessário levar a maquineta?

— Já te disse que não gosto quanto te referes assim ao Reasom. É uma invenção incrível. Se a tua avó foi realmente morta por alguém, vou ajudar a descobrir. Pode ser um momento de viragem na minha carreira. E na minha vida.

— Parece que a morte da minha avó poder ser um crime não te incomoda. Só queres saber da tua carreira…

— Não digas isso, meu amor. Apenas quero contribuir para saber a verdade e, se for o caso, fazer justiça sobre a morte da pobre Lucinda.

A polícia acompanhou Leonardo até à casa em que Mélanie vivia com a avó, onde esta a encontrara morta no dia anterior, envolta numa aura celestial. A avó repousava serena quando se abeirou dela. Descobriu-lhe a ausência de pulso. A tez pálida e fria confirmou-lhe a suspeita. Não chorou. Não gritou. Uniu-lhe as mãos e soprou-lhe ao ouvido “descansa em paz, meu anjo”.

Leonardo olhou em volta o quarto onde tantas vezes visitara Lucinda. Um polícia fardado acompanhara-o, garantido a segurança do aposento. Pousou uma mala na cómoda e abriu-a suavemente. Retirou o Reasom, uma esfera metálica pejada de sensores, capaz de captar as vibrações mais subtis. Pediu silêncio ao polícia e ativou o aparelho. Um som estéreo, como uma melodia incompleta, preencheu o ambiente. A máquina começou a traduzir as frequências emocionais: dor, culpa, medo, desespero e até alguma raiva. Se houvera crime, tinha uma profunda assinatura emocional. Por fim, o Reasom indicou um padrão vibracional.

— Não pode ser! — reagiu, incrédulo.

Nos dias seguintes, Leonardo sentia um misto de orgulho e desconforto. A sua invenção tinha funcionado perfeitamente, mas não conseguia ignorar uma sensação incómoda. Revisitava os dados frequentemente. Um ruído de fundo, quase impercetível, como se as frequências tivessem sido alteradas, sobressaltou-o. O Reasom nunca houvera errado, mas também nunca tinha sido testado num crime de sangue.

Determinado em descobrir a verdade, o jovem obteve autorização da polícia para voltar ao local do crime, selado. Mélanie, que fora impedida de pernoitar na casa, ainda dormia quando ele se esgueirou, sorrateiro, com a mala debaixo do braço. Reativou o Reasom e filtrou os dados com maior precisão. De novo o mesmo resultado. De novo o mesmo choque. Os dados não deixavam dúvida e evidenciavam as frequências emocionais no momento do crime. Sentiu o chão fugir.

— Isto é impossível — murmurou, não podendo ignorar a evidência.

Amargurado, começou a observar-lhe os comportamentos. Ela parecia nervosa, desconfiada e evitava falar sobre o assunto. Quando lhe propôs irem ao cemitério velar a campa, desviou o olhar. Um dia, munido de coragem, procurou-a e confrontou-a:

— Diz-me a verdade.

— Ousas achar que alguma vez te menti?

— Eu quero muito acreditar em ti, mas o Reasom

— Essa máquina não pode medir a verdade — interrompendo-o. — Só emoções. E as emoções podem ser confusas. Contraditórias até.

Desesperado, revisitou os dados mais uma vez. Pedindo ao Reasom que filtrasse os fatores com maior precisão, apercebeu-se de algo novo: havia emoções da segunda pessoa naquele espaço. As frequências assim o indicavam. Ouviu-as exaustivamente, até divisar um ruído de fundo, quase impercetível, uma falha, como se as frequências tivessem sido alteradas. Alguma coisa havia interferido com a máquina antes da primeira análise. Mas a única pessoa com poder para o fazer era ele próprio. Confuso, percebeu que estava a ser manipulado pela sua própria criação. Como se quisesse plantar dúvidas na sua mente para afastá-lo da verdade.

Na procura por explicações, combinou os dados puros da máquina com a sua própria investigação. Descobriu as emoções da vítima, algo que o Reasom nunca tinha captado em outros casos. Porque desta vez o teria feito? Leonardo sentia-se destruído psicologicamente. Decidiu confrontar Mélanie.

Tomada pelo remorso, contou-lhe como tudo se passara naquela tarde: — A minha avó, ao fim destes anos todos, falou. Disse-me “obrigada, mas já chega”. Indicou a terceira gaveta da mesinha de cabeceira, que prontamente abri. Dentro de uma caixa estava um frasco que lhe entreguei. Pediu-me que saísse. Logo não percebi, só horas mais tarde é que entendi o que se passou. Perdoa-me por não te ter contado. Achei que essa máquina nunca ia conseguir decifrar nada. Tive medo. E agora?

— Não te preocupes. Sei o que tenho a fazer.

O cientista olhou para o Reasom, agora ciente do seu potencial destrutivo. A máquina era brilhante, mas vulnerável e a sua capacidade de captar emoções sem contexto podia facilmente ser usada para o mal.

— Chegou a hora, meu amigo. Não podemos continuar juntos.

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AUTOR(A)
Ana F. Pinheiro

Ana F. Pinheiro, nasceu em 1985, em Almancil, Loulé. Casada, mãe de dois rapazes, licenciou-se em Educação Social. Atualmente exerce funções de Diretora Técnica numa IPSS.

Apaixonada pela leitura, descobriu o prazer da escrita com a participação no Concurso de Escrita Criativa Poeta António Aleixo. Permitiu-se soltar as suas palavras, pondo a sua «Escrita em Ação» e percebeu que é a escrever que se sente completa, feliz e realizada.

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