Autor(a):

Gabriela Pacheco
Gabriela Pacheco

Sétimo dia

Ao sétimo dia voltou a viúva. Voltam quase todos ao dia sete, o depois é uma incógnita. Manda-se dizer o nome na reza. Uns tustos, pensará quem cobra, e vai a alma em paz. Os preceitos da fé têm contornos curiosos.

Trazia umas flores entre a cintura e o colo do braço esquerdo, uma saia justa cobrindo os joelhos, com uma racha na parte traseira que aguça a curiosidade, cujo propósito é facilitar o que deve ser facilitado: o andar, a passada, um pé diante do outro. Havia segurança sobre os stiletto de verniz preto. Os olhos nem precisam de enfrentar o chão para perceber onde colocar o salto fino; os pés sabem o que fazer. A palidez de viúva curada ao sétimo dia. As faces rosadas, em contraste com a camisa branca de cetim, dentro da saia caçada, de mangas largas o suficiente para que o vento dançasse dentro delas. Uma viúva de gabarito, tornou a pensar Benício. Já não havia medo de chorar, as pestanas longas, carregadas de preto, davam sentido à análise. Flores-protocolo.

Fez o longo corredor do cemitério, sempre a direito. Passou por Benício sem ceder no passo, na voz, na missão. Sem boas tardes ou cumprimentos substitutos. Sem acenos de cabeça, sem mais. Esta passerelle já pedia uns stiletto de verniz preto. Benício, o jardineiro dos mortos, olhava-a.

 

Tampouco me reconheceu. Foi, talvez, o que aconteceu para a ausência de contacto. O casaco de botões dourados e o chapéu português com que lhe enterrei o marido fazem um homem parecer mais homem.

 

Benício parou a poda para a admirar. Pelas mãos, perto dos quarenta. É pelas mãos que se adivinha quase tudo. A confiança explicará se são uns quarenta sábios. Os mortos estão à espreita. A beleza será sempre um espetáculo fascinante. Deitou as flores sobre a morte. Benzeu-se. Dois minutos de olhar fixo na pedra, bastou. Olhou em torno, à procura. Um homem sente quando o procuram. Benício limpou as mãos às jardineiras. Bateu as galochas no chão, há que afugentar o máximo de pó que se pode. À camisa axadrezada, pouco ou nada se podia fazer. Uma camisa de meios botões, aos perdidos: Glória a Deus. Haverá Ele de compreender as dificuldades de um coveiro. O cabelo meio comprido, o suficiente para arrumar atrás das orelhas, obedeceu à ordem de arrumos. As mãos com terra se manterão; não dá para negar o que se é, nem vale a pena tentar. É descabido. Servirá alguns momentos e dará lugar certo à desilusão. Assumir dará, porventura, lugar ao fascínio. O estranhar e o entranhar serão sempre mais proveitosos do que o desiludir.

Os olhos da viúva não encontravam Benício. O jardineiro caminhava na sua direção pelas costas, embalado pelos cabelos-avelã da viúva morena. Haverá sempre uma elegância muito particular nos cabelos de avelã.

Esta morte não parecia descolorir os sonhos. Ainda assim, por estar longe de ser verdade o que deduzimos da realidade, escudamo-nos na convencional educação.

— Vim lamentar.

Benício estava parado a um metro das costas da viúva que, ao ouvi-lo, não se voltou para o olhar. Ignorando o lamento, permaneceu de olhos postos na pedra, perguntando-lhe:

— As borboletas que têm origem no estômago podem ser fruto de um cemitério?

— Que nunca ninguém duvide de que neste lugar nascem coisas.

Cinco minutos de silêncio. Benício olhava os cabelos-avelã que dançavam na brisa suave; o momento pede que assim se descreva, situar a poesia conhecida da dança, dos cabelos e do vento. A viúva deixou-se estar.

— A morte rouba força a quem fica, é esta a tragédia. É preciso encontrar o valente do lado de dentro — continuou Benício.

— A valentia mora no momento em que o vinho só serve um copo de cristal e me reconheço só.

— Custa-lhe a ausência?

— De quê?

— Perguntava de quem. Dele?

— Sempre foi mal-intencionado. Um estafermo com ar de urtiga.

— A pergunta será, então, de quê?

— Borboletinhas.

Benício calou-se. A viúva voltou-se para tomar o caminho de volta. Os stiletto meteram-se em marcha. Uma breve pausa ao lado de Benício, que continuava com o cabelo obediente por detrás das orelhas cuidadas de higiene. Sussurrou-lhe a viúva-avelã:

— Esta morte fez-me tremer uma vez só, no momento em que quis vir aqui para o ver. A si.

E continuou. Firme, segura, pé diante do outro, pelo corredor a direito até ao negro portão escancarado para a vida. Não olhou para trás. O que está dito, dito está. Foi-se.

Benício olhou o marido jazido.

— Não leves isto a peito. Será melhor para os dois, mais para ti do que para mim, que enquanto eu for vivo está a tua eternidade a meu cargo. Cheiras-me a corno merecido.

Gabriela Pacheco,

«O convalescido que amou o Homem morto» (manuscrito em construção).

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Gabriela Pacheco
Gabriela Pacheco

Escritora, já premiada em concurso artístico na vertente literária. Colabora com plataformas digitais, tem e-book e é coautora em coletâneas. Ghostwriter, copywriter, formadora e gestora de desenvolvimento e formação com certificação internacional em Practitioner PNL – Programação Neurolinguística e graduação em direção hoteleira.

Formou-se em Ciências da Educação e da Formação e foi alimentando a sua curiosidade pelo universo. Só assim se escreve, quando nos alimentamos primeiro. É ter sempre o útero cheio, come-se por dois: para nós e para o escritor dentro de nós.

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