Autor(a):

Isa Silva
Isa Silva

O rapaz das notas musicais

João abria os olhos e nunca gostava do que via. Dentro do quarto distraía-se com o que podia e não com o que queria. Havia ainda tanto para entender. Tinha apenas quatro anos, mas já era muito alto, como gostava de referir sempre que o chamavam de pequenote.

Naquela noite, os pais estavam agitados e não sabia porquê. Falavam ser necessário decidir o seu futuro. Não percebia o que isso quereria dizer e agarrou-se ao seu peluche favorito: o leão. Conversou com ele, desabafando que não gostava quando a mãe e o pai ficavam assim, misteriosos. Precisava de um motivo para o seu pensamento voar sempre que não gostava de algo. Aproximou-se da janela e, colocando a cabeça sobre o leão, acabou por se deixar dormir.

Devagar, a mãe abriu a porta e encontrou-o naquela posição. Não era a primeira vez. Muito gostava ele de ir para ali. Respirou fundo e, pegando-o ao colo, deitou-o, sem se esquecer de aconchegar o leão e dar-lhe um beijo terno. Sentia-se culpada, porque tinha consciência de que tinham elevado a voz um pouquinho demais. Mas a preocupação era grande, estavam a decidir o futuro do filho, o apoio que necessitava e as despesas que isso implicaria.

João adorava música, mas não sabia porque soava assim, de onde vinham os sons. Queria ver para além de sentir. Mexia no piano, brincava com as cordas da viola, tocava no tambor e continuava sem saber de onde nasciam os sons. Possivelmente vinham de alguma terra escondida, porque, por mais que procurasse, não encontrava nada. Absolutamente nada!

Um dia, quando estava quase, quase a fechar os olhos, reparou numa figura a espreitar por detrás da almofada. Deu um pulo e quase caiu no chão. A figura assustada escondeu-se de novo para, segundos depois, tornar a espreitar, acompanhada por mais uma, duas, três, quatro, cinco e seis amigas.

Desta vez não se assustou. Estava deveras curioso e tentou tocar-lhes. E foi então que todas elas lhe rodearam a mão e a música começou a sair. Fizeram-lhe cócegas no nariz e festas nas bochechas rechonchudas e João gargalhava com os seus movimentos. Pareciam rir e fazer-lhe umas caretas para provocarem mais risos. Estava encantado!

A melodia parou e elas desapareceram.

O pai entrou para o aconchegar e dar-lhe um beijo de boas noites. João fechou os olhos e mal conseguiu dormir, tal não era a sua excitação para continuar a brincar com aquelas figuras tão giras e divertidas. Mas agora não podia colocar música. Amanhã mal acordasse, tentaria de novo.

E assim foi. Enquanto se vestia com a ajuda da mãe ouvia música e soltava gargalhadas o que a espantou.

— Oh, não te estou a fazer cócegas. Porque te ris?

— São as minhas amigas.

A mãe olhou em volta e espreitou pela janela e nada viu. Possivelmente estava a chegar ao tempo dos amigos invisíveis. Olhou para os peluches espalhados sobre a cama. E num sorriso disse:

— Sim, sim, estou a ver. São horas de ires para a escola.

Os dias passavam e João continuava a ver aquelas criaturas, até que certa vez, na nova escola, percebeu que eram notas musicais. Aprendeu que cada uma tinha um som e um nome e todas juntas criavam melodias. Era uma espécie de alfabeto, mas bem mais interessante do que aquele que aprendia para ler.

A Dó era a mais rabugenta e mandona; a Ré andava sempre a mil à hora; a Mi era a mais fofinha, sempre a dar abraços e beijinhos; a Fá cantava muito alto e era a vaidosa do grupo; a Sol era tão quentinha e dava muita luz (se calhar era por ter o mesmo nome da estrela); a Lá de vez em quando desaparecia e andava sempre de um lado para o outro, nunca estava quieta; e, por fim, a calminha Si, que era muito sonolenta e só queria estar sossegada. E ainda havia uma outra que só aparecia raramente, quando estava tudo numa desordem: a Clave de Sol. Era com todas estas doidas e amorosas figuras que o João vivia e… ninguém as via. Só conseguiam ouvir.

Por mais que contasse o que conseguia ver, nem uma pessoa acreditava e todos diziam que aquilo não existia. Elas estavam ali a sorrir para si, como poderiam afirmar que não existiam?! João começou a sentir-se especial. Não entendia porque mais ninguém as via, mas era da maneira que seriam só suas!

Elas, as notas é claro, estavam a fazer-lhe muito bem. Permaneciam junto dele para o ajudar a aprender na escola, a comportar-se melhor à mesa para não espalhar a comida e a saber dobrar e guardar a roupa, enfim, a fazer tantas e tantas outras coisas. Estavam sempre lá. Até mesmo quando andava na rua, elas seguiam-no, olhando para tudo e pulando na sua cabeça e ombro. Havia uma, a nota Si, que gostava de se aconchegar no bolso do casaco. Até ressonava.

A paixão pela música aumentava e cada vez mais as notas musicais, suas amigas, tinham um papel fundamental no seu dia a dia. Sempre presentes. ajudando-o, brincado com ele, distraindo-o das dificuldades e avisando-o do perigo.

Aos oito anos, o João fez um pedido especial aos pais para o seu aniversário. Queria um teclado para aprender música. Os pais trocaram olhares um pouco preocupados, questionando-se de como conseguiria. Na verdade, quando o recebeu chorou de alegria e começou logo a testá-lo. Devagar e procurando a melhor maneira de o usar, tentava — é esta a melhor palavra para descrever o barulho, tentava — tocar algo. Mas ele não desistia e fazia o esforço de melhorar. As notas musicais resmungavam com ele e diziam que aquilo não era música, que tinha de parar, mas João não parava. A Dó só tinha dó de tudo, a Ré fugia a alta velocidade, a Sol escondia-se a tremer de medo e a Si andava alarmada de um lado para o outro, cheia de sono, porque não conseguia descansar. Ninguém aguentava aquela chinfrineira. Até os pais ficavam desesperados com as suas “músicas” e, em algumas ocasiões, protegiam os ouvidos com tampões.

Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e Si fizeram algo radical para perceber o que se passava: desapareceram. João chamava por elas e nada. Ficou tão preocupado que mal comia. Cheio de saudades das suas amigas, prometeu que iria aprender a tocar correctamente.

Vendo a dedicação e paixão do filho, arranjaram um professor singular e o João aprendeu, aprendeu mais, aprendeu muito e um dia, surpreendeu todos com a sua mestria e capacidade musical. Até as suas amigas notas cantavam e dançavam embaladas no seu ombro.

Percebeu que era esse o seu destino.

E os anos passaram e foi crescendo e nunca largou a música. Cada vez que compunha e tocava, voava e era livre, sentia uma felicidade indescritível. Conseguia fazer tudo e não pensava nos assuntos menos bons.

Quando fez quinze anos recebeu uma outra prenda que tornaria os seus dias mais intensos: um cão. Também ele era especial. Ficou encantado ao perceber o quanto o iria ajudar, contudo, continuava indeciso sobre que nome lhe dar.

Chamou-o Pimpão. E os pais concordaram porque aquele cão era todo janota e festivo, mas ao mesmo tempo mostrava também grande responsabilidade. Nunca fazia asneiras e prestava atenção a tudo.

O Pimpão era muito esperto, acompanhava-o para todo o lado e, acima de tudo, avisava-o do perigo. João adorava o seu novo amigo e falava-lhe das notas musicais e Pimpão parecia compreender tudo. Por vezes até ladrava como resposta. Será que ele também as via?

O tempo passou e João tornou-se um grande músico e compositor e, sempre que tocava ao vivo, lá ia o Pimpão com ele. Sentava-se exactamente ao seu lado, atento e sossegado. Acabava muitas vezes por ser o centro das atenções no meio de uma enorme orquestra. Nem se assustava quando o bombo ou os pratos soavam. Solene e altivo, Pimpão fazia parte de tudo aquilo e tornou-se uma estrela, juntamente com João. Os colegas músicos ouviam falar dele e quando o conheciam, ficavam encantados. Pimpão estava sempre a seu lado, muito tranquilo e a cumprir o seu papel. Tornou João famoso e inspirou tantas outras pessoas. Os seus pais, sempre que podiam, acompanhavam-no e orgulhosos sabiam que tinham tomado as decisões certas no passado. Ter assim um filho especial não era fácil.

João, apesar de ser cego, nunca parou de sonhar. A cegueira não o impediu de fazer o que mais gostava e de viver em pleno.

Foi com ela que desenvolveu os outros sentidos e aumentou a dedicação à música. Podia não ver o mundo, mas via as suas queridas notas musicais que nunca o largavam.

(A autora não segue o acordo ortográfico)

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AUTOR(A)
Isa Silva
Isa Silva

Nasci no verão de 1966 e desde então a imaginação fez-me companhia no desenhar e no criar histórias. Frequentei a Escola de Artes de António Arroio e a ETIC. Na minha segunda vida (como gosto de salientar) redescobri o desenho, a pintura, a fotografia e a escrita. Conjugo estas paixões com trabalhos em design gráfico e formações de arte e manualidades.

Participei em várias exposições colectivas tanto a nível de desenho como de fotografia e pintura.

Tenho alguns livros publicados e em 2013 fui autora e figurinista teatral com uma peça para infância. Em 2014 estreei-me na arte urbana.

Faço parte dos Urban Sketchers Portugal desde 2010.

www.isasilva.com

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