Autor(a):

Ana Costa
Ana Costa
Pés de Petiz

E agora?

Era o último dia de aulas. As férias de verão tinham chegado. O Chiquinho pulava de alegria, pois esperavam-no dois meses na casa dos avós, que viviam numa pequena aldeia da serra.

Aquele neto era o que mais gostava de os visitar. Adorava os costumes simples e até tinha o seu próprio cantinho para cultivar.

Assim que chegou, deu dois beijos aos avós e despediu-se dos pais, que tinham de regressar à cidade. Depois apressou-se a rever os animais da quinta e a sua horta e, claro, procurar o André. De braços abertos, correu pelo caminho de terra batida que levava à modesta casa onde o amigo morava. Encontrou-o a apanhar morangos. De sorrisos no rosto, abraçaram-se e aproveitaram logo para se deliciarem com a fruta acabada de colher.

— Sabes, tenho uma coisa muito fixe para te contar — disse o André.

— Ui, diz lá!

— Em julho, a minha madrinha vem buscar-me para passar uns dias com ela…

— O quê? Então… vais embora, quando eu acabei de chegar?  Não podia vir buscar-te noutra altura?

— Ela só tem férias agora e assim aproveito para ver o mar…

— Bolas, não podia vir para cá em vez de seres tu a ir com ela? Como tens a coragem de me deixar sozinho? És o meu único amigo aqui! E tu bem sabes!

— Então pá! Queres ver que agora não posso sair daqui por causa de ti?

— Pensei que fôssemos amigos.

— E somos.

— Os amigos não deixam os amigos sozinhos quando eles os visitam.

— Estás a ser injusto.

— Injusto és tu! — gritou o Chiquinho. E pôs-se a correr para junto dos avós.

Entrou em casa, bateu com a porta e fechou-se no quarto.

A avó, que estava a tirar um bolo do forno, queimou-se na forma, porque se assustou. Admirada, foi ter com o neto.

— Não quero falar com ninguém — disse ele, deitado na cama, de barriga para baixo, a esconder a cara entre os braços.

A avó sentou-se a seu lado e, com carinho, quis saber o que se passava. O Chiquinho acabou por contar e ela, com um leve sorriso, pegou na mão dele e perguntou:

— Por que é que gostas tanto de vir para aqui?

— Porque gosto da liberdade, de estar na natureza, do sol, da terra e também de brincar com o André e ajudá-lo nos trabalhos da quinta. — respondeu o Chiquinho, um pouco admirado com a pergunta.

— E gostas de tudo isso porque na cidade não tens estas coisas.

— Pois não.

— Já viste se não pudesses vir para cá? Como te ias sentir?

— Triste, muito triste.

— Sabias que o André nunca saiu daqui e nunca viu o mar?

O Chiquinho, franziu a testa, sentou-se na cama e perguntou:

— A sério?

— A sério. Nem imaginas como anda feliz, desde que a madrinha esteve cá e

contou que passaria as férias com ela.

O pequeno começou a sentir a barriga a mexer e um aperto no peito. Agarrou-se à avó e, com uma lágrima a querer saltar do olho, lamentou:

— Fui tão injusto com ele… fiz asneira… se calhar nunca mais quer falar comigo…

— Porque não vais ter com ele?

Decidido, levantou-se e saiu de casa.

— Desculpa. Portei-me muito mal… — disse, assim que chegou junto do André.

O amigo continuou a apanhar morangos e a retirar as ervas daninhas, ignorando-o.

— Não sabia que nunca tinhas saído daqui…

O André parou e, de costas para o Chiquinho, acrescentou:

— Há muita coisa sobre mim que tu não sabes.

— Desculpa, por favor!

Como nem um nem outro gostava de estar zangado, deram um abraço e fizeram as pazes.

Enquanto o André não foi embora, aproveitaram o tempo nos trabalhos da quinta, nas brincadeiras, nos mergulhos no rio e nos passeios com as cabritas, para as levar a pastar.

No dia em que a madrinha do André o levou, o Chiquinho sentiu um grande vazio, mas também estava feliz, pois um verdadeiro amigo alegra-se com a felicidade do outro, mesmo que não faça parte dela.

Apesar de encontrar sempre o que fazer, o Chiquinho, às vezes, aborrecia-se porque lhe faltava a companhia especial do André. Valiam-lhe os avós, mas não era a mesma coisa.

Entretanto, o tempo mudou. Adorava andar à chuva, saltar nas poças, fazer castelos de lama, mas ao terceiro dia já tinha saudades do sol, dos mergulhos no rio… Foi então que se lembrou de explorar o sótão. Quando lá ia, descobria sempre algo de novo e era mesmo disso que precisava.

Assim que entrou, olhou devagar em redor. Entre caixas, malas antigas e armários, uma pequena arca de latão azul escuro com ripas de madeira captou de imediato a sua atenção. Parecia um baú dos piratas. Será que tinha um tesouro? Sentou-se no chão, de pernas cruzadas, colocou a arca à sua frente e mirou-a. Os olhos brilharam e o coração saltou. Custou um pouco a abrir e quando viu o que estava no interior, abanou a cabeça. Agitou a arca e nada mais encontrou do que uma peça de um puzzle. Que desilusão! Atirou a peça lá para dentro e baixou a tampa, mas não a conseguia fechar, parecia que tinha qualquer coisa a impedir a tampa de assentar, como se estivesse demasiado cheia.

À medida que empurrava, a força contrária era cada vez maior. Abriu de novo a arca e lá dentro apenas estava a peça de puzzle. Voltou a pegar nela, mirou-a de todos os lados para adivinhar a que imagem pertencia. Na tentativa de ver melhor o que estava pintado, esfregou-a entre as mãos. E, de súbito, a peça fugiu-lhe e caiu sobre o tapete, multiplicando-se em imensas peças. Recuou, assustado. Olhou para todos os lados, mas tudo permanecia igual e a chuva fazia-se ouvir na vidraça da janela.

— Chiquinho, onde estás? São horas de ires tomar banho, para depois jantarmos — gritou a avó.

— Já vou! — respondeu ele, enquanto apanhava as peças. Meteu-as na arca, que se deixou fechar, e escondeu-a dentro de uma caixa de cartão vazia.

Não parava de pensar no puzzle, tinha de o montar para descobrir de que imagem se tratava. Sempre gostara de puzzles, mas aquele estava a deixá-lo tão curioso que mal comeu. A avó até estranhou quando ele disse que estava com sono e queria dormir.

“Só espero que não esteja a chocar uma gripe.” Pensou ela para consigo.

Na verdade, o que ele queria era que todos adormecessem para poder ir buscar o puzzle. Os olhos queriam fechar-se, mas ele resistiu e quando o silêncio e a escuridão se instalaram, saiu sorrateiro, de lanterna na mão, e foi para o sótão.

Pegou na arca, abriu-a e espalhou as peças à sua frente. Pegou numa e, de ambos os lados, era de um azul muito escuro, com uns pontos brilhantes. Pegou noutra e noutra… todas iguais. Que grande quebra-cabeças seria montar aquilo. Começou a encaixar as peças e pouco a pouco foi surgindo diante de si aquilo que parecia um céu infinito e repleto de estrelas. Olhou com mais atenção e quase que jurava que as estrelas cintilavam e, de repente, viu uma estrela cadente. Uau. O puzzle estava vivo! Será que podia pedir um desejo? Não perdia nada em tentar. “Gostava que o André aqui estivesse!”

E imediatamente o André aterrou junto dele, ainda estremunhado e em pijama. Ambos esfregaram os olhos.

— O que aconteceu? — perguntou o André.

O Chiquinho quase que nem conseguia falar, mas lá mostrou o puzzle e contou ao amigo o que tinha acontecido.

— Acho que estou a sonhar… — disse o André.

— Não estás não, queres ver? — E beliscou-o.

— Ei. É mesmo verdade!

Entusiasmados, olharam para aquele céu infinito e depois contaram um ao outro o que tinham feito durante aqueles dias. O Chiquinho deu uma grande gargalhada, quando o André lhe disse que bebeu água do mar sem saber que era salgada e bateu com o cotovelo na perna da cadeira que estava ao seu lado, fazendo cair uns livros. De imediato, ouviram vozes e a luz do corredor acendeu-se. Mal tiveram tempo de tapar o puzzle com a caixa de cartão e enfiar-se dentro do guarda-fatos. Sentiram passos na escada e o avô abriu a porta. Os corações batiam tanto, que tinham receio de serem ouvidos. Pelas frinchas, viram um gato aparecer, sem perceberem de onde, que, a correr, passou por entre as pernas do avô e quase o fazia cair.

— Mas que raio. De onde saíste tu?

O avô fechou a porta. Desceu as escadas e ouviram-no bater com a bengala, abrir e depois fechar a porta de casa. Falou com a avó e, depois, o silêncio regressou.

Saíram com muita cautela do armário e, num sussurro, o André perguntou:

— E agora? Tenho de regressar para junto da minha madrinha… como fazemos?

O Chiquinho, coçou a cabeça, sentou-se no chão, tirou a caixa de cima do puzzle e pôs-se a mirá-lo, à espera de uma resposta. De repente, viu outra estrela cadente.

— Já sei! Vou desejar isso mesmo! Quero que regresses para junto da tua madrinha!

E, assim que acabou de falar, o André desapareceu. Olhou para o puzzle e viu-o deitado numa cama, a virar-se e a aconchegar-se. Depois, o puzzle começou a perder a cor e a desaparecer, ficando apenas uma peça.

O Chiquinho guardou-a na arca e colocou-a onde estava. Voltou a deitar-se, mas nem conseguia adormecer.

Acordou tarde. Esfregou os olhos e, lembrando-se do que tinha acontecido, pensou “Será que sonhei?”.

— Ó filho, até fiquei admirada por dormires até tão tarde. Estás bem? – disse a avó.

— Estou, mas tenho fome.

— O almoço está quase pronto.

Enquanto esperava, pegou numa maçã, voltou para o quarto e ligou ao André. Ele não tinha telemóvel, mas tinha deixado o número da madrinha. Para seu grande espanto, o André disse que não tinha acontecido nada de especial durante a noite. “Se calhar sonhei mesmo!”, pensou o Chiquinho. Foi ao sótão. A arca lá estava, abriu-a, tirou a peça, esfregou, mas nada aconteceu. “Às vezes, os sonhos parecem mesmo realidade!”

Alguns dias depois, o André regressou, feliz e cheio de histórias para contar. O Chiquinho ouvia-o com atenção e entusiasmo.

— Nem sabes da melhor — disse o André —, eu pensava que a água do mar era igual à do rio e pus-me a beber! Ai que mal me senti!

— Eu já sabia!

O André ficou intrigado, porque não tinha dito nada a ninguém, por ter vergonha. Como poderia o Chiquinho saber? Então, este levou-o ao sótão e, pegando no baú, fez o relato do que tinha acontecido com o puzzle. Mas quando o abriram, em vez de uma peça de puzzle, estava lá uma peça de lego.

O André já estava a desconfiar que o amigo sonhara e saber da história da água do mar era apenas uma coincidência. Nesse instante, a peça de lego, que tinha na mão, saltou para o tapete e multiplicou-se em inúmeras peças.

O que terá acontecido a seguir?

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AUTOR(A)
Ana Costa
Ana Costa

Ana Costa é natural de Viseu. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas Variante Estudos Portugueses e Franceses pela FLUC, conta com mais de vinte anos de experiência no ensino. Apaixonada pela vida, pela natureza e pelo bem-estar físico, mental e espiritual, dedica-se há cerca de dez anos ao desenvolvimento pessoal e às terapias naturais. É mestre de Reiki e terapeuta/ monitora nível 1 de Chi Kung. Sempre acalentou o gosto pela escrita, publicando textos num jornal académico — Letrear — criado quando era estudante e em jornais escolares de várias escolas por onde passou. Em 2004, publicou em coautoria o livro As Faces Secretas das Palavras com a editora ASA. Em 2020, participou com um poema na Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea Vol. XII – Entre o Sono e o Sonho da ChiadoBooks. Em 2021 participou com outro poema na coletânea Alma de Mar também da ChiadoBooks. Ainda neste ano, publicou o conto “Uma ponte para o passado” na coletânea Não vão os lobos voltar e o seu primeiro livro juvenil Mergulhos na maré vazia, ambos edição de autor. Está envolvida em vários projetos literários e dinamiza Oficinas de Escrita Criativa. Acredita na força da palavra escrita e no seu poder transformador.

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