Autor(a):

Ana F. Pinheiro
Saltando do Parêntesis

A carta que nunca (te) escrevi

Talvez eu tenha começado esta carta mil vezes.

Nunca no papel, mas sempre no pensamento – e no coração.

Ela surgia nas ocasiões em que nos cruzávamos, nas madrugadas em que o sono teimava em não vir, no silêncio frio dos lençóis.

Começava-a sempre assim:

“Não sei se ainda te lembras do som da minha voz, mas às vezes eu falo com o vento, fingindo que me respondes…”

E parava por aí.

Não por falta do que dizer, pelo contrário, era excesso. Como se escrever qualquer coisa fosse limitar tudo o que representou em mim.

Como se, ao tentar colocar em palavras, reduzisse o que foi intenso – ainda que unilateral.

“Li-te com os dedos trémulos, como quem toca uma cicatriz antiga. Cada frase uma ausência, cada ponto final – uma dúvida.”

E de novo parava, mergulhada no recanto das lembranças.

Não por falta do que recordar, pelo contrário, era saudade. E lágrimas corroídas entre a pele salgada.

Nunca soube das vezes em que quase bati na porta só para dizer “morro por ti”. Das mensagens que digitei e apaguei. Dos aniversários que lembrei e fingi que não. Das conversas inteiras que tivemos, ainda que só na minha cabeça.

Quase todos os dias me pergunto como seria se tivesse tido coragem. Será que teríamos dado certo? Ou o tempo ter-nos-ia levado mesmo assim?

“Fiz de ti uma companhia muda, sussurro entre café e chuva. Imaginei-te sentado à mesa, olhos em brasa, palavras cruas.”

E logo a caneta afrouxava do papel, perdida a essência do olhar. Não por falta do que ver, pelo contrário, era tristeza.

Há um lugar em mim onde ainda é manhã e sinto o cheiro a café e desculpas.

Procurei o nome que não chegou, como um fim que nunca foi escrito. Vi-me mergulhada na história de um apaixonado, saudoso e esperançoso, por vezes rendido. Palavras como tentativas de eternidade. Rascunhos de um amor que só existiu no desejo.

“A cada tentativa, uma lacuna. Um “se” suspenso. Um “quando” sem depois. Um “espero(te)” que talvez nunca tenhas ouvido. Escrevo(te) para não desabar. E para nunca realmente ser lida.”

De novo a amargura sucumbia ao papel, obcecada que estava por respostas. Não por causa do ponto final, pelo contrário, era uma vírgula que esperava.

Histórias precisam de um fim. Filmes precisam de um clímax. Relacionamentos precisam de definição. Mas e se o mais profundo da vida estiver, justamente, nas entrelinhas? Nas cartas nunca enviadas? Nos abraços que não aconteceram? Nos amores que só tocaram a borda da existência?

“Talvez nunca conheças as palavras que (te) escrevi. As lembranças marcadas de um amor que reprimi. Não cabe num envelope. Porque talvez o que vivemos – ou quase – precise de permanecer assim, suspenso e inacabado. Um esboço delicado do que poderia ter sido. Há um certo requinte nisso, sabias?”

Todos temos um pedaço de coração por escrever.

Todos temos uma história que preferimos deixar inacabada – não por cobardia, mas por delicadeza.

Não ter escrito foi, de algum modo, uma forma de (o) guardar por inteiro. Sem pontos finais. Sem explicações. Sem fim. E, talvez, uma maneira de ter paz.

A carta que nunca (te) escrevi continua viva.

Porque algumas coisas, quando não se concluem, simplesmente continuam.

“Se eu nunca terminar esta carta, talvez jamais te vás embora. Porque te amar inacabado, é amar-te eternamente possível.”

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AUTOR(A)
Ana F. Pinheiro

Ana F. Pinheiro, nasceu em 1985, em Almancil, Loulé. Casada, mãe de dois rapazes, licenciou-se em Educação Social; atualmente exerce funções de Coordenadora Técnica de respostas sociais numa IPSS e formadora.

Apaixonada pela leitura, descobriu o prazer da escrita com a participação no Concurso de Escrita Criativa Poeta António Aleixo. Permitiu-se soltar as suas palavras, participando como autora de um conto na coletânea “Não Vão os Lobos Voltar”, na Revista literária PALAVRAR – Ler e Escrever é resistir, em outras revistas e concursos literários.

É autora da página no Instagram e Facebook Escrita à Mesa, onde faz pequenas partilhas, como textos, contos, crónicas e reflexões.

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