Autor(a):

Ana Paula Miranda
Ana Paula Miranda
Per ficta resistire

A última dentada

O relógio avança sem olhar para trás. A cada movimento dos ponteiros dá algumas respostas explícitas e outras menos evidentes. O tempo é isso mesmo. A galope, de manto ao vento, percorre o infinito. Fecha ciclos. Abre novas eras, ora luminosas, ora encobertas pelas trevas.

Essa criatura estranha, que não se deixa ver, intimida os mortais. Todos. Nem os mais racionais escapam. Pertence ao grupo dos que não se deixam governar. Muitos tentaram impor-lhe regras através do autoritarismo, sem sucesso. Ninguém o detém. Elias, o engenheiro de almas, inquietava-se a cada momento que passava, antevendo avanços demasiado apressados para o seu gosto.

— Não o conheço. Nunca lhe vi o rosto, nem sequer o consegui cheirar. Ele existe, sem dúvida alguma. Se não, qual a explicação para esta cortina de cabelos brancos que cobre a minha cabeça? Como justificar as rugas que me sulcam o rosto neste leito de rios gretados pela seca? E a curvatura na coluna que veio quebrar-me a compostura?

— Pai, por que te preocupas tanto?

— Ele vem sem avisar. Quando menos se espera, já tomou conta da nossa vida. Devíamos estar preparados. Não nos iludamos. Nunca conseguimos chegar a um acordo. Ele é quem manda. Ditador sem coração!

Alexandre não entendia bem o que o pai queria dizer. Aliás, ultimamente, andava estranho, com conversas difíceis de acompanhar. Com quinze anos, Alexandre percebia a existência do ontem, do hoje e do amanhã. Não se importava com mais nada. Tudo parecia sempre igual. Continuava a ser o Alexandre, filho de Elias e Helena.

O pai tinha-lhe explicado que a vida e a morte se entrelaçam. Mas, também, que a Humanidade não quer partir inacabada. Não admite ser esquecida, muito menos ignorada pelas gerações seguintes. Deixar marcas e obra feita é uma pegada indestrutível. A tal linha que separa o “eu” dos “outros” numa fusão do “nós”.

— Já estás a complicar tudo. Há algum tempo que andas a tropeçar nas palavras ou nos pensamentos, sei lá. Explicaste-me que ter um filho, escrever um livro e plantar uma árvore são três feitos que nos tornam imortais. Falta dizeres o que acontece se morrermos antes de realizar as três coisas.

— Morremos na mesma. Imperfeitos.

— Bem, então há muita gente imperfeita por aí! Dessas três coisas, acho que só vou conseguir fazer uma.

— Estou a ver… Ser pai?

— Errado. Não quero ter filhos e não tenho jeito para escrever. Plantar uma árvore é a mais fácil.

Elias sorriu, conivente com a leveza imatura da adolescência. Ele próprio ainda não tinha concretizado todas as tarefas. Aliás, a que mais lhe interessava nem sequer constava da trilogia da imortalidade. A ponte: essa seria a obra que o incluiria para sempre na eternidade. Elias, o construtor da ponte mais longa do planeta Terra. Isso, sim, soava bem. Evocava monumentalidade, solidez e durabilidade.

Há anos que a projetava. Primeiro na mente, depois no papel. Esboços, estudos, ensaios multiplicavam-se. A semente, lançada muito antes do nascimento de Alexandre, ainda não germinara. Elias chegou a pensar que era uma espécie de maldição por ser tão ambicioso.

O tempo não esperava. Aos cinquenta anos decidiu ser pai. Casou-se com Helena, vinte anos mais nova. Não queria correr o risco de não conseguir procriar. Uma mulher jovem oferecia garantias de sucesso. Não qualquer uma. Precisava ser tão formosa que o encantasse sem hesitação e tão delicada que o seduzisse como uma substância aditiva. O vício da perfeição. A seiva do compromisso. Para sempre.

Helena via nele um homem de intenções estampadas no rosto. Apreciava a determinação e a profundidade do olhar aveludado. Sentia firmeza nos sentimentos que não hesitava em demonstrar. Adorava quando Elias lhe dizia que a amava. Que era a mais bela flor de lótus do seu paraíso. Um tesouro só seu. Lia nele a subtileza das palavras, a profundidade do belo e do incompleto. A barba escura, agora malhada de neve, emoldurava o rosto de pele morena, de onde emergia um nariz adunco. Alexandre, o filho, não herdara essa característica física. A boca de Elias dava voz à fábrica de ideias e concebia o beijo arrebatado. E que beijo. E que abraço.

Elias, em ânsias, era assaltado pelas dores lancinantes da incerteza: alcançaria o sublime querer? Desejar exigia fazer. O projeto da ponte avançava noite após noite, em insónias continuadas. A ideia era dar a volta ao mundo numa engenharia que transcendesse a técnica e a funcionalidade. Cada pilar seria acompanhado de arcadas construídas com materiais diferenciados: madeira, ferro, pedra, marfim, bambu… representando características de várias civilizações. Os arcos respeitariam ordens arquitetónicas variadas: de volta perfeita, ogivais, em ferradura, do tipo Tudor, em anel, rampantes, elíticos ou rebaixados.

Alexandre preocupava-se com o afã do pai. Reconhecia nele traços de loucura. Como poderia imaginar que uma ponte daquelas fosse possível? Não lhe podia dizer que parecia doido, nem que a falta de sono lhe provocava confusões.

— Andas a trabalhar muito. Não achas melhor descansar? Eu e a mãe estamos preocupados contigo.

— Não há motivo. Estou a criar o que ninguém algum dia imaginou. A ponte mais longa do planeta Terra. Vai dar a volta ao globo num círculo perfeito.

— Sim, sabemos da tua ideia. Mas já viste bem? Madeira, marfim… Isso não vai durar muito.

— Tudo é impossível até ser conseguido. Estes materiais não ficam suspensos no ar. Para os ligar coloco no sítio certo, cristais, xisto, mica e feldspato. Os meus cálculos estão bem fundamentados na engenharia mais avançada.

“Pobre pai”, pensava o rapaz. “Não consigo contrariá-lo. Está tão entusiasmado com a obra que parece ter atravessado para o outro lado.”

Helena acompanhava os passos do marido. Tentava não o deixar sozinho. Mostrava-se interessada no projeto. A preocupação não a abandonava. Temia pela sua saúde física e mental. Receava perdê-lo. Havia cumplicidade entre ambos. O mesmo não se podia dizer da intimidade. O tal do tempo só deixava espaço para a obra. Ainda assim, não cogitou partir. Naquela casa, que preferia chamar lar, residia a riqueza que nunca conhecera antes: a família, o amor sem cobranças, a liberdade de ser e de agir conforme as suas opções.

A corrente de três elos mantinha-se fortalecida: Elias, Helena, Alexandre. A perfeição humana, cheia de diferenças e de complacências. A ponte que os unia não precisava de mais tecnologias. Maior perfeição era impensável.

Elias continuava o seu intento. Era só ligar os arcos e os pilares no sítio certo, e o quebra-cabeça estaria completo, seguro e colorido. Estava a ficar bonito.

Helena permaneceu vigilante:

— Tens de te alimentar. Barriga vazia não puxa a carroça.

— Barriga cheia provoca sono que é inimigo da exatidão.

 

As palavras não o convenceram. Helena decidiu agir. Foi à cozinha, preparou um tabuleiro com torradas bem amanteigadas, ao gosto de Elias, e uma bebida de cevada. Alinhou três túlipas cor-de-rosa. Intimou-o a fazer uma pausa. Haveria tempo para terminar o trabalho.

Ele lançou-lhe o sorriso mais radioso que vira. Acenou para que Helena se sentasse no seu colo. Envolveu-a num abraço profundo.

Alexandre chamou a mãe, que foi ver o que o filho queria. Ao voltar, Elias descansava no sono eterno. Ao seu lado, a torrada com a marca da dentada sorria. Eternamente.

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AUTOR(A)
Ana Paula Miranda
Ana Paula Miranda

Ana Paula Miranda, nascida em Lisboa em 1969, é professora de História.

Em 2007 publicou  Luís Fróis, um português no Japão no século XVI, dirigido aos mais jovens.

Participa em atividades de escrita inseridas no Clube dos Writers – O Prazer da Escrita e na dinâmica À Luz das Letras. Tem presença na revista  digital Repórter Sombra e na revista literária Noctua FeminaPulsos Literários. Também conta com dois microcontos publicados na Fábrica do Terror.

A democracia e o bem-estar social aliado à literatura e à arte dão-lhe alento para acreditar num mundo melhor.

Não dispensa o amor da família, o carinho pelos animais, café, chocolate e abraços apertados.

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