Exausto, entro em casa. Perco a roupa no caminho, arrasto-me até ao chuveiro, abro a torneira e deixo a água quente surrar os músculos doloridos. Dez horas depois, poderei descansar.
As ligações estão quase todas prontas, e amanhã não terei nem de me empoleirar, nem contorcer, para passar cabos e fios, para a maldita escultura — perdão, a obra-prima da megera, de aço e lâmpadas — ficar iluminada e finalmente parecer-se com algo bonito.
Deito-me e nem tenho tempo de pensar seja no que for; o cansaço transporta-me para o vale dos devaneios.
Na manhã seguinte, chego mais tarde, porque também é preciso repousar para se poder terminar o trabalho, e mal ponho o pé dentro do espaço, vem a diva a esbracejar na minha direcção.
— Onde é que estava, há imenso trabalho para terminar. Você é um irresponsável.
— Seria irresponsável se ontem não tivesse ficado até às tantas da madrugada para colocar todas as junções operacionais e seguras. Hoje é só para fazermos testes e validarmos que tudo está estável.
— A minha obra precisa que a sua luz não falhe.
— Garanto-lhe que não vai faltar nada.
Marta sai da galeria para o jardim. A Fundação, para além do edifício principal e da galeria, tem entre ambos um espaço verde, com vários géneros de flores, alguns limoeiros e uma estufa de vidro, com vinte espécies de orquídeas. Distraída nos seus pensamentos, caminha até ser rodeada por elas. Observa-as; se algumas são muito comuns, existem géneros de cores e feitios bem diferentes. Uma de tom violeta e em forma de estrela capta-lhe a atenção. A singularidade torna-a mais bela. Regista a forma das pétalas, o tom, assemelhando-se a uma capa de veludo roxo. Olha à socapa e, não vendo ninguém, passa o dedo indicador na pétala, que se enrola sobre si mesma, para sua surpresa. Fascinada, pega no pequeno bloco que anda consigo e rabisca a flor. Feliz, sai da estufa e dirige-se ao carro. Tem de regressar à oficina; aí conseguirá produzir o elemento que falta para a peça se tornar la sculpture.
Júlio está a terminar as verificações em falta e pede ao colega para se posicionar junto ao painel, pois é preciso começar a ligar as 3876 lâmpadas de diferentes tamanhos e tons que compõem a peça. Tratava-se de uma bota de mulher, de cano curto, com detalhes na lateral a imitar atilhos; as luzes eram de diferentes tamanhos e uma cor mais escura. No dia seguinte, seria a abertura da exposição e não poderia haver falhas. Estava a bom ritmo, hoje iria conseguir jantar… a horas.
— Sr. Júlio, há uma alteração a fazer. Vamos ter de montar e acoplar, mais um elemento que acabei de fazer. Trouxe-o na minha carrinha, por isso, é preciso que o senhor e o seu colega o tragam para aqui. Depois temos de o juntar. Já lhe explico como vai fazer.
— Desculpe, mas o nosso trabalho está pronto. O que quer dizer com juntar?
— É uma outra peça para se unir aqui, na base da bota. Depois, é só ligar as lâmpadas.
— Só ligar. Se fosse fácil, qualquer um faria, mas é preciso ter atenção às voltagens, aos cabos que se ligam…
— E é para isso que está aqui.
Júlio respira pelo nariz, expira pela boca e responde com um leve sorriso: — Como referi, estamos encarregados das ligações eléctricas, mas não fazemos transportes.
— Ora essa, não é um transporte; é apenas trazer o novo elemento aqui para dentro.
— Imagine que, ao passar na porta, bate e se danifica; o meu seguro não cobre algo que não faz parte do meu trabalho. Lamento, mas não a posso ajudar.
Marta foi ficando cada vez mais ruborizada, a raiva mal contida. Girou e saiu da sala.
— Xiii, chefe, a mulher estava capaz de o fuzilar.
— Se ela não fosse assim, até ajudava, mas, se tivéssemos o azar de estragar alguma coisa, estaríamos tramados. Vamos começar os testes.
Quarenta minutos depois, apercebem-se de uma comoção à porta. Cinco homens trazem mais uma amálgama de luzes. Junto à forma da bota, perto dos atilhos, é colocado o novo pedaço. Ela vai dando ordens, sobe para um escadote e lá o conseguem prender.
Júlio fica a olhar e tenta perceber por onde passarão os cabos de alimentação.
— Agora nós, Sr. Júlio. Esta nova peça é uma flor, que deve ter uma cor uniforme quando alguém se aproxima e passa a mão na frente. Estas fileiras têm de mudar para outra cor, as restantes devem manter a cor original. Dará o efeito de a flor se estar a fechar ao toque.
— Portanto, quer este novo pedaço todo ligado, todas devem ter a mesma cor, excepto quando alguém faz mudar de cor, só a parte de cima, e ainda quer que isso seja accionado com um sensor? Não me parece ser possível.
O sorriso da artista desaparece ao ouvir as últimas palavras.
— Claro que é possível. Basta acrescentar mais ligações.
— Não. Para além de acrescentar mais ligações, uma parte precisa de receber uma informação para mudar de cor. Devemos ter a certeza de que não há sobrecargas, pois isso pode vir a causar um curto-circuito. Para que as pessoas possam acenar, o que desencadeará a mudança de cor. Mesmo trabalhando com afinco, não sei se conseguimos fazê-lo.
— Trabalhe a noite toda, se for necessário, mas amanhã tem de estar pronto.
Sem esperar por resposta, Marta sai da galeria, com o técnico a tentar acalmar-se.
— Para uma mulher bonita, é insuportável. E agora?
— Agora, vou-te dar uma lista de componentes para ires comprar e veremos o que conseguimos construir.
Enquanto aguardava os componentes, foi desenhando o quadro eléctrico que usaria para ligar mais todas aquelas luzes. Depois, era preciso fazer uma parte mudar de cor, mediante um sensor. Isso seria complexo, e a falta de tempo significava não ser possível a inclusão de forma segura. No entanto, estava disposto a deixar tudo ligado. A luz e a mudança de cor estariam operacionais.
Assim que o colaborador chega, decide fazer os testes programados. Confirmam que tudo acende e as medições estão dentro dos parâmetros admissíveis. Depois, é preparar a inclusão das novas luminárias.
— Então, está pronto?
— Conseguimos interligar tudo, excepto o sensor.
— Não, precisa de estar operacional.
— Oiça-me. Está instalado, mas as medições revelam picos, o que pode originar um curto-circuito.
— Faça as ligações; a minha obra não vai ficar inacabada – exigiu Marta.
— Não. Recuso-me a deixar algo que possa rebentar, causar um incêndio ou ferir alguém. O nosso trabalho está terminado. Desejo-lhe sucesso.
Júlio encaminha-se para a porta, deixando-a só. Relutante, a artista vai-se embora.
No dia seguinte, chega pela manhã e dirige-se à sua peça, usa os controlos que Júlio deixou e liga a sua escultura. Está resplandecente, emana luz, brilho e ardência. Só faltava o sensor para alterar a cor e imitar uma flor a fechar-se. Decide ir até ao quadro eléctrico e perceber como ligar o sensor.
As pessoas circulavam pela exposição e, quando chegavam à escultura central, Marta ia-lhes dizendo para passarem a mão e observarem a flor a fechar. O efeito deslumbrava.
Era noite quando os jardins da Fundação ficaram iluminados por luzes azuis.
O incêndio estava na fase de rescaldo, poderia ter sido mais grave se os extintores na galeria não estivessem operacionais e alguns dos empregados do catering não os tivessem usado. Os feridos eram ligeiros, inalação de fumo, pânico, pequenas quedas durante a fuga. A única vítima a lamentar era a artista, que, segundo testemunhas, tentou salvar a peça, sendo eletrocutada.
Nota: por desejo da autora, este conto não segue o Acordo Ortográfico de 1990


