Não por acaso, tenho uma serpente tatuada no braço. Na verdade, tenho duas, mas tecnicamente uma delas é um Ouroboros. Não porque a serpente seja símbolo do conhecimento, mas por representar o Eterno Retorno. O tempo cíclico ao invés do linear. E nada termina, porque se renova.
Onde completude é possível, acompanha-a a perfeição. Por isso descansou Deus ao sétimo dia. Instala-se então o spleen. O oásis de horror no deserto do tédio, diria Baudelaire. Oh, a entediante perfeição, onde as musas se contemplam à distância, a arte está para lá do vidro de protecção e os museus albergam cadáveres para adorarmos. Prometeu trouxe-nos o fogo divino e tantas vezes temos medo de nos queimarmos.
O perfeito é um produto acabado em que não se mexe, digno apenas das vitrinas. A perfeição é robótica, maquinal e inumana. Somos seres imperfeitos, porque estamos permanentemente inacabados. Essa imperfeição permite uma abertura que faz de nós mesmos e de tudo o que concebemos um trabalho em constante progresso. E o mais perto que alguma vez estaremos da conclusão é na aceitação da sua impossibilidade.
Essa existência inacabada é, em si mesma, um estado de graça, porque possibilita a construção perpétua. É ela que nos salva do enfastiamento robotizado das construções como as que a Inteligência Artificial proporciona. É por isso que tantos criativos se sentem ameaçados pela IA. Procuram a perfeição e não chupar o tutano. O tutano que levou Thoreau para o bosque e ali viver deliberadamente.
A IA, cérebro sem coração e sem Inteligência Emocional, só nos pode levar até certo ponto. Se é que nos leva a algum lado onde interesse estar. É potencialmente magnífica para nos libertar de tarefas embrutecedoras – geradoras de emprego e nesse ponto a automação, desde o tempo dos luditas, acarreta sempre essa consequência – mas terrivelmente castradora de criações dotadas de personalidade.
A IA, como todas as máquinas, possibilitará que cheguemos a um termo na criação. A uma conclusão. Uma vez esgotadas todas as formas lógicas de construção e utilizada toda a informação nessa criação, o trabalho estará concluído. Nenhum Ouroboros dela brotará e jamais a serpente devorará a sua própria cauda em permanente renascimento.
As máquinas conduzir-nos-ão invariavelmente em direcção à uniformização, forma avalizada de um produto acabado. Preenche os critérios, é produzido em série, não tem defeitos e está pronto. Nós, humanos, demasiado humanos que somos, escolheremos infalivelmente a via do facilitismo, fruto, sobretudo, do presente contexto socioeconómico que exige cada vez mais de uma humanidade já de si em sobrecarga.
Não creio que o problema seja a IA em si mesma, mas o contexto no qual é desenvolvida. E esse contexto de predação, competitividade e individualismo egóico exacerbado, só pode potenciar os efeitos nefastos dessa ferramenta, que, tal como a energia nuclear, pode ser utilizada como fonte de criação ou de destruição. A nossa preocupação, com a IA e com todas as outras ferramentas análogas ao nosso dispor, deve ser o repensar o mundo e em como torná-lo mais justo. E para ser mais justo, a primeira medida terá de ser a libertação de todas as áreas da subjugação à barbárie da economia.
Mas essa mudança terá de acontecer a dois tempos e, no respeitante à criação artística, Brian Eno, ao mesmo tempo crítico e utilizador de ferramentas de Inteligência Artificial, aconselha os músicos jovens, cuja perfeição sonora está ao alcance de um clique e alguns euros, a não criar discos perfeitos. A deixar os erros registados, como marca de humanidade, nas gravações.
A conclusão criativa é término e o término equivale a uma morte. O que há depois da conclusão perfeita? Apenas a profanação dessa perfeição ou o vazio. O fecho e a morte.
No inacabado enquanto parte do processo, a criação é eterna. Renova-se, assim cantava Lemmy Kilmister, The chase is better than the catch. E adoramos uma boa perseguição.
O inacabado, enquanto afirmação do erro e da falha como parte da composição, representa sempre novas possibilidades. Infinitas. Forma única do eterno na possibilidade reavivada.
Ao longo da história são inúmeros os episódios em que erros e falhas se tornaram métodos dos criadores, sendo o caso mais flagrante o de Jackson Pollock. Ao derrubar acidentalmente uma lata de tinta sobre uma tela branca, Pollock ficou fascinado com os padrões criados e a partir daí desenvolveu a sua técnica dripping, que o tornou ímpar.
Nenhuma criação estará alguma vez acabada. O tempo da criação é cíclico, tal como o das colheitas, pois ambos irrompem da fecundidade. São essas as verdadeiras deusas da arte: Osíris e Afrodite. É por essa razão que cada vez que voltamos ao livro que estamos a escrever, fazendo alterações ad eternum.
Costumo dizer que não acabo de escrever livros, só desisto de os recompor. Porque a alternativa é a espiral de loucura da reescrita infinita ou o spleen do insuperável. Fluamos entre ambos.
O autor não segue o Acordo Ortográfico de 1990


