Autor(a):

Luciana Morais
Saltando do Parêntesis

A beleza do vir a ser

O mais importante e bonito do mundo é isto:

que as pessoas não estão sempre iguais,

ainda não foram terminadas —

 mas que elas estão sempre mudando.

Guimarães Rosa

A jornada é o peregrino. E “mais importante que o destino é a viagem”, afirmava Eduardo Lourenço. As experiências e vivências humanas são mais inspiradoras e necessárias que a própria vida; noutras letras portuguesas, “navegar é preciso, viver não é preciso”. Ainda no dimanar das águas, Heráclito proclamou que ninguém se banha no mesmo rio duas vezes, pois quando imergimos não somos mais os mesmos e nem são as mesmas águas. Nasce a noção de devir, tornar-se; a entender que tudo flui e nada permanece. Ações libertadoras movimentam e transformam. Há crescimento e evolução. A preciosidade do vir a ser como possibilidade e potência, encanta e seduz, e faz a graciosidade do caminho. A viagem torna-se o viajante, como desassossegou o poeta português.

O Universo valsa num fluir onde cada coisa é e não é ao mesmo tempo, num eterno baile do vir a ser. E como se associa intuitivamente mudança a movimento, é possível compreender o devir como a mudança de si mesmo, enquanto um giro em torno do próprio centro, assim como os movimentos cíclicos do cosmos. Desta forma, as transformações são como um perene retorno, a constante realidade entre o ser e o vir a ser. A inteligência que orquestra harmoniosa e minuciosamente o concerto da vida, transborda requinte ao ver numa semente uma árvore esplendorosa.

A vida enquanto arte provoca a rigidez do conceito hermético desta palavra que nos escapa das mãos e voa com asas de liberdade. Para Nietzsche a arte é um grito de criação, uma ruptura com a roda viva da existência; não busca a verdade, não é engajada, moralista ou determinista, ela está acima do real sem pretensões metafísicas. E sem finalidades, assim como o jogo do artista e da criança, configura como “um vir a ser e perecer, um construir e destruir, sem qualquer acréscimo moral, numa inocência eternamente idêntica”. É o enlevo de olhar a arte como devir de vida.

O pensador do martelo propõe a arte como potência de vida que brota do impulso ambíguo, imbricado em complementariedade de Apolo e Dionísio. A manifestação do impulso apolíneo — da forma e da individuação —, e o impulso dionísiaco — do êxtase e do caos — resulta em arte e artista, na multiplicidade de sentidos que não se esgotam em si. A magia do inacabado, presente em tudo, aguarda o seu momento de devir. E muito mais que o resultado, importa o processo da criação artística, pois impregnados do espírito criador, cria-se e é criado no mesmo processo, nasce uma nova forma de existência, como um novo rumo, um novo caminho. E os pés que os transcorrem não são mais os mesmos.

A beleza está em trançar o fio da existência a entrelaçar tudo o que foi e o que virá a ser, sabedores de que não há uma finalidade e, sim, um devir, como a encruzilhada que Guimarães Rosa afirmou no seu grande sertão, “tudo o que a gente foi é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito”.

Ao espelhar a natureza, o encantamento dos ciclos faz-se espontâneo e artístico. Nada está pronto, acabado ou definido, pois há uma multiplicidade de valores e revalores e transvalores a ser construída no infinito vir a ser. O fascínio de priorizar a diferença ao invés da identidade, o devir ao invés do ser, a invenção e a criação ao invés da revelação é uma forma de apreciarmos a arte de viver e usufruir dela criatividade para trilhar a jornada na terra. Ao entregar-se a leis maiores, crescer com as experiências e deleitar com isso, é possível compreender amorosamente o processo da vida e respirar o primor de toda transformação.

“Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza”, mais uma vez encanta o poeta mineiro, e “para viajar basta existir”, disse Fernando Pessoa; existimos para fluir nos caminhos a construir — e construirmo-nos —, e inevitavelmente retornarmos ao mistério desconhecido e esperado. Que façamos uma boa viagem, a aproveitar as aprendizagens do caminho com a arte que embeleza o vir a ser da vida.

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AUTOR(A)
Luciana Morais

Luciana Morais, revisora de textos e pós-graduada na área da educação. Autora em revistas digitais e antologias publicadas no Brasil e Portugal. Participa dos clubes de leitura Transatlânticos e Era uma voz. Ama livros, abraços e flores. Consulta oráculos e toma chá. Medita e faz artesanato. Mãe de dois adolescentes incríveis. Brasileira que vive em Coimbra desde 2020.

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