Autor(a):

Maria da Paz Camacho
Per ficta resistire

A Cicatriz

 Aquela cicatriz era diferente das outras. Tinha um formato sinuoso, semelhante a um fecho éclair. Os pontos dados por um cirurgião, de mão certa, ainda lá estavam e aquela linha preta ziguezagueava pelo braço fora, dando a impressão de ser uma tatuagem. Não era. A sua dona andava com o braço encostado ao corpo numa posição de defesa, devido à dor que sentia. Quem via aquela cicatriz cogitava como fora feita. Talvez fosse causada por uma queda? O braço embatera em algo com aquele formato? Teria sido uma agressão? Qual seria o objeto usado pelo agressor?

A cicatriz acabou por sarar, mas o ziguezague ficará registado para toda a vida no braço e na alma. A causa e como tinha sido provocada, só a dona sabia, pois não queria dar explicações, nem comentar o acontecido. Era um segredo seu.

Quando a família, os amigos e os colegas perguntavam o que tinha acontecido, respondia que tinha caído e cortado o braço. Era impensável confessar a verdade, de certeza que os pais e os irmãos iriam reagir e as consequências seriam terríveis. Quanto aos colegas, a explicação também estava fora de questão, pois não era costume partilhar a vida particular com ninguém e, se desta vez o fizesse, a notícia correria célere e chegaria aos chefes. A posição que detinha na empresa não podia ser beliscada, porque dependia dela para viver.

Algumas vezes esteve tentada a pedir auxílio, mas recuava sempre, por falta de coragem e receio das consequências. Não conseguia imaginar como seria a sua vida depois de um ato desses. Tinha conhecimento de que, ao pedir ajuda, a teria, mas os dias passavam e tudo continuava na mesma. Às vezes perguntavam-lhe a razão de aparecer com equimoses, respondia – ter batido com a cara na porta, escorregara no duche, uma vez até disse que batera com o carro à entrada da garagem e o «airbag» não tinha funcionado, ou outras explicações irrisórias. Não era fácil aquela vida dupla. Viver o dia a dia sempre a fingir que tudo na vida corria normalmente e sem percalços.

Nem se recordava há quanto tempo representava aquela pantomima. Tentava enganar todos, mas até quando o seu estado mental o permitiria, era uma incógnita.

A continuar aquela situação teria de inventar algo para que pudesse sublimar o sofrimento que a corroía. Sempre ouvira falar que passar para o papel, o que vai na alma é uma grande ajuda e funciona como catarse. Então, resolveu fazer isso. Havia um inconveniente, os desabafos escritos, por algum acaso, irem parar a mãos alheias, com evidentes consequências. Tinha de arranjar um estratagema para que tal não acontecesse e eis que surge a ideia de escrever um conto. Usaria um pseudónimo, para manter o anonimato. Esteve uns tempos a amadurecer a ideia, a ponderar prós e contras e, quando se sentiu preparada, começou a escrevê-lo conto, de maneira a partilhar o que acontecera, e porventura, ajudar outras pessoas que viessem a ter a mesma experiência.

Ana

            João e Ana vinham de diferentes zonas do país e encontraram-se no mesmo curso. Nos primeiros dias de aulas, nunca deram um pelo outro. No entanto, logo no início das praxes, os olhares cruzaram-se e foi o começo do interesse recíproco. Frequentavam as mesmas aulas, o que facilitou a aproximação entre ambos. Ana ainda se lembrava do momento em que ele se aproximou pela primeira vez, num intervalo das aulas, e perguntou-lhe se queria ir tomar um café. Aceitou e foram conhecer-se melhor.

Aquele convite repetiu-se quase todos os dias e foram trocando impressões e aproximando-se cada vez mais. Já sabiam tudo sobre a vida um do outro, de onde vinham, quem eram os pais, os irmãos e restantes elementos da família. Cada vez mais partilhavam as vidas, nas horas das refeições e até em pesquisas na biblioteca. A rotina de um era a rotina do outro, raramente se separavam. Daí até partilharem o alojamento foi um passo. Estavam juntos vinte e quatro horas do dia.

A existência corria normalmente, mas talvez devido à convivência diária, algumas coisas tinham mudado na relação. Ana notava, surpresa, que a maneira dele falar não era a mesma, irritava-se com coisas insignificantes e começava uma discussão. Como poderia esquecer quando ele tentou beijá-la e ela afastou-se. A reação dele não se fez esperar, deu-lhe uma bofetada. Ficou perplexa e tão assustada com aquela atitude que nem reagiu, mas pensou que algo de grave tinha acontecido. Muitas vezes calava-se, embora sabendo ter razão, mas achava que não valia a pena, porque ele nunca aceitava ser contrariado.

Numa ocasião, ao jantar, Ana disse:

— A Rita convidou-me para passar o fim de semana na casa de praia  e aceitei. Apetece-me espairecer um pouco e estar perto do mar.

            — O quê? – questionou ele, furibundo. – Deves ter perdido o juízo, achas que podes ausentar-te de casa assim, sem mais nem menos? Esquece isso!

Perante a reação, teve a certeza que estava a ser controlada e que a liberdade estava comprometida. Desiludida, acabou por fazer-lhe a vontade e inventou uma desculpa para justificar à amiga a razão pela qual não podia aceitar o convite.

Naquela noite, já passavam várias horas e o jantar arrefecia, ele estava mais atrasado do que o costume.

Ultimamente aqueles atrasos repetiam-se, sem explicações plausíveis. Ana, apesar de humilhada, fingia que nada se passava e, quando ele entrava em casa, procedia com normalidade, para não piorar a situação. No início, ele ainda tentava desculpar-se com trabalho excessivo ou o trânsito, mas após algum tempo nem se dava ao trabalho.

Vai ser hoje que vou enfrentá-lo, já estou farta disto, o que acha ele que eu sou?

Logo que sentiu a porta a abrir, dirigiu-se-lhe e saiu a pergunta que há muito estava atravessada na garganta:

— Por que razão vens tão tarde?

— E tu o que tens com isso?

Bastaram estas palavras para que a chispa se acendesse e o chorrilho de ofensas crescesse de tom. Ana lembrava-se de ser empurrada, de algo bater-lhe no braço e a porta da rua a cerrar-se com violência. Olhou para o braço, o sangue jorrava de uma ferida profunda em forma de ziguezague, tingindo de vermelho o chão branco da cozinha. Confusa, não entendeu o que sucedera, a adrenalina não permitia que sentisse dor, mas olhou para a mesa da cozinha e viu o objeto que causara a agressão:  a faca elétrica. Fatiara o pão para o jantar e, distraída, tinha-se esquecido de a desligar da corrente.

O namorado não deu sinal de vida nessa noite, nem nas seguintes. É melhor assim, o comportamento dele, está cada vez mais distante  e agressivo. Finalmente tenho descanso, alguma alegria e tempo para me dedicar aos meus afazeres. Agora posso programar os meus tempos livres, viajar, voltar a sair com as amigas, quando me  apetecer, andar ao fim da tarde e apreciar o pôr-do-sol, como tanto gosto, voltar para casa com a alma lavada. Posso ler o tempo que me apetecer e até voltar a escrever, ocupação que tenho negligenciado ultimamente. Posso visitar a família. Não vou  ficar ansiosa quando ele chegar a casa e com reações mal-humoradas. Posso dizer aos meus pais e amigos que estou livre.

Eles avisaram que aquele relacionamento estava a destruí-la. Ela, cética, nunca quis reconhecer. Teve a ilusão que ele mudaria o comportamento e voltaria ao normal, como nos primeiros tempos. Um dia reparou numa mensagem no telemóvel, nem queria acreditar que ele tivesse o descaramento de lhe escrever. Pedia-lhe para se encontrarem, quando Ana tivesse oportunidade. Espantada, não sabia como reagir à proposta, ficou confusa, mas perante as alegações dele, que estava arrependido, que nunca mais teria tal comportamento, que daí para a frente as coisas seriam diferentes, acabou por ceder e marcar encontro. Ele propôs voltar para casa.

Vou dar-lhe uma segunda oportunidade.

 Daí para a frente as relações entre os dois correram sem problemas de maior. Aproximavam-se as férias e durante o jantar, o assunto surgiu. Ana notou, desanimada, que ele não reagiu bem à ideia. Não valorizou muito o assunto, talvez fosse altura de muito trabalho e ele não pudesse ausentar-se. Passaram-se semanas, a marcação das férias e a escolha do local tornaram-se imperativas. Numa noite, Ana achou o momento indicado e voltou ao assunto, esperando que desta vez ele tivesse outra reação e colaborasse na escolha do destino.  O comportamento dele manifestou-se ainda mais estranho, não só desvalorizou o assunto como até propôs que ela fosse sozinha de férias, porque não era oportuno para ele. Perante a reação, ela sentiu uma enorme frustração, mas esperou que o jantar acabasse, para voltar ao assunto mais tarde. Assim fez:

            — Mas sempre fomos de férias, porque razão agora tem de ser diferente?

A insistência fez com que ele reagisse mal, e Ana viu um lampejo de raiva naqueles olhos, impressão que já era familiar quando ele perdia o controlo das emoções.

De repente, sentiu as mãos dele a apertarem-lhe o pescoço, gritava:

— Não tenho de dar-te explicações de nada, queres ficar com mais uma cicatriz? Não estás contente com essa que tens no braço, faço-te uma com mais requinte.

Sentindo-se asfixiar reagiu.

Tenho de lutar não vou acabar os meus dias às mãos deste energúmeno. É agora…

As aulas de autodefesa, valeram-lhe naquela ocasião. Deu-lhe uma joelhada nas partes íntimas e a dor afrouxou-o. Desenvencilhou-se e fugiu pelas escadas abaixo, até à porta da vizinha. Depois a polícia chegou…

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AUTOR(A)
Maria da Paz Camacho

Natural e residente no Funchal.

Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante Português-Inglês, pela Universidade da Madeira.

Master of Arts em Literatura Inglesa, pela Universidade Aberta do Reino Unido.

Colabora com artigos para revistas culturais:

Revista Islenha – Revista semestral de índole cultural, propriedade da Direção Regional de Cultura, da Região Autónoma da Madeira. Publica ensaios/artigos dedicados a temas e assuntos que promovam o aprofundamento do conhecimento acerca da sociedade, da cultura e do património madeirense.

Revista Nas Asas da ASO – Revista trimestral, propriedade da Academia Sénior on-line, publica crónicas, memórias, contos e reflexões dos alunos da própria instituição.

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