A Ana era assim. Uma espécie de ser feito de todas as formas de antecipação que se pudessem imaginar, fosse através da pele resguardada pelo meio centímetro de tecido, fosse pelo que as suas palavras davam a entender.
Há muito que tinha rejeitado uma determinada modéstia. Podia mesmo dizer-se que teria nascido com esse banimento gravado na personalidade, o qual, por altura da puberdade, explodiu numa curiosidade (auto) consciente que até a protegeu. À timidez e medo de aceitação, substituiu-se uma curiosidade voraz. Quase se tornou uma convicção, especialmente quando o corpo despertou.
Quando a conheci, pensei que ela nunca teria sido outra coisa senão alguém acerca de quem se tornava possível imaginar tudo, desejar imenso, mas não saber muita coisa. Era de tal forma livre na sua naturalidade que o desejo que criava alimentava-se da
sua natureza irrestrita. A inibição surgia-lhe como um conceito que desconhecia enquanto impulso, mas que manobrava como norma social. Desde a curva da coxa na saia, nem demasiado larga, nem demasiado apertada, à opinião informada sobre si mesma, enquanto detentora de voracidade, muito do que mostrava era o fabuloso desplante de assumir certos pudores como pura perda de tempo. Além disso, mostrava a dimensão da minha repressão e o quanto me debatia com a necessidade de a manter, por um lado, e como sofria por contorná-la constantemente, por outro. Ela sabia dizer o quão nua estava debaixo de toda a sua roupa e dispensava a mediação dos que opinavam sobre o que ela deveria desejar, através da entrega a apetites que não tinham outra justificação que não a sua.
A Ana era também o seu sexo, que brotava das suas palavras, do toque do seu corpo, das farripas molhadas de suor após os orgasmos, seus ou alheios, que a desenhavam numa unidade inseparável. Tinha tanta gana perante si mesma, que a saúde da sua identidade assentava numa alternância imprevisível, feita de uma voragem de prazer, à qual se podia seguir um “quase” ascetismo, que servia para que ela conhecesse até que ponto poderia desejar e como isso a levava a criar-se a si mesma.
A Ana amava, mas talvez não apenas como os outros entendiam o verbo ou o conceito. A Ana amou-me, e eu a ela, mas tentar abarcar a totalidade do seu desejo seria como agarrar o vento ou tentar saber todos os sabores dos vinhos do mundo. Tinha sempre um pé no firmamento, uma parcela sua e constantemente ausente, o que lhe dava um poder considerável. A Ana nunca se esgotava.
Tinha também aquela “maldita” curva dos lábios. Desenhados num expoente carnudo, certamente com milhares de teorias sobre beijos e os locais onde podem ser imaginados. Malditos também o tom de voz, a esgrima de palavras, a arte de nudez sem pele.
Nua, com ou sem roupa, nas palavras, desesperada pelo quanto poderia querer alguma coisa, algum toque, alguma presença. Havia laivos de um beijo indefinível em cada palavra, de ameaça, de sabedoria da tontura alheia. Havia algo de demonstrado, de ligeiramente petulante, de autoconsciente. Havia algo de fome nas duas sílabas, como um tiro, uma noção daquilo que extravasava, mas que ao mesmo tempo era manuseado, como um atirador de facas com um copo a mais. Recordo a silhueta no escuro, aquele andar do corpo até mesmo quando estava parado.
A Ana tinha o poder dos sinceros. Algo sem culpa, mas ainda assim a temer.
A Ana desejou desconhecidos. E teve-os.
Falava da sua vida, dos parceiros, da narrativa da cama, como me dizia. Discorria como um viajante, alguém que, por possuir tanta capacidade de enlevar os outros, aprendia com isso. Sabia de si, ao ver-se no efeito que provocava. Por vezes sofria com o desequilíbrio que ocorria amiúde. O seu desejo, por mais intenso que surgisse, era suplantado por um impacto nos outros que os levava a confundir a experiência com outros sentimentos.
Não será surpresa para ninguém saber que a Ana era mais amada do que seria capaz de amar, embora a força do seu desejo fosse quase sempre mais intensa que a dos seus parceiros. Inebriada pela sua capacidade de sentir e, ainda assim ser livre, lutava internamente com o significado da palavra. Mas amava sim, embora não da forma “procedimental” que lhe exigiam na esmagadora maioria das vezes e, no entanto, isso não afastava ocasionais perenidades. O toque real perdurava no tempo dela até que parecesse uma entidade diluída em memórias imprecisas.
A Ana tocou(se) em muitas peles, em muita gente, em muitos sexos, em muitos desejos diversos, destroçando a inibição que não a definia. Falava muito, contava-me sempre um pouco de tudo, ignorando como eu sofria por uma formatação exclusivista que, estupidamente, achava que lhe era aplicável.
Não hesitava. Falava como percebia, sem intermediações de qualquer forma de recato. Usava linguagem suja quando o calor do sangue ordenava, mas o maior despudor estava na confissão das vontades sem os constrangimentos de adequação. No que dizia respeito ao que sentia e como achava que poderia agir em conformidade, não queria ser nem adequada, nem polida. Para ela, não havia sexo ou desejo a mais, e nada disso lhe beliscava aquela aura contraditória de presença-ausente, que a tornava tão terrível para quem a desejava ou tinha uma qualquer curiosidade que a incluísse. Parecia fascinada com tudo o que produzia. Qualquer estímulo genesíaco criava uma voracidade pelo mundo que ela achava pertencer-lhe.
Não há maior tristeza que a memória persistente de um fantasma. Os fantasmas são feitos do potencial interrompido, das pessoas que são histórias cuja palavra fim foi aposta a meio da narrativa. Não encontro expressão alguma que melhor possa definir a Ana, ou talvez no que ela se tornou, o requinte cruel do que tudo nela se tornou inacabado.
Os seus não eram ordenados. Como todas as pessoas, tinha contradições e os riscos associados àquelas. Era normal que fosse desejada ou amada, precisamente o motivo pelo viriam, mais tarde, a odiá-la. Para alguns, o paradoxo da caça eterna é um motivo de ascensão a grandes alturas de enlevo, mas também causa quedas súbitas num fosso de violência.
Assim foi que, à semelhança de tanto quanto tinha visto e ouvido ao longo do tempo que estive com ela, a Ana manteve o seu entendimento das coisas, mesmo quando ele representou um perigo para ela.
O André era um homem intenso, inteligente, mas incapaz de lidar com alguém que o quis, a certa altura, mas a quem nunca conseguiu impressionar. Estava habituado a criar necessidade de si, mas nunca a sentir o seu oposto. Ao André não bastava ser gostado. Necessitava que precisassem dele, na medida em que essa espécie de sede formava o identificador da ligação partilhada.
A história foi tão rápida, quanto intensa, trágica e definitiva.
A desinibição dela foi o início. Criou nele uma tal necessidade que ele não sabia enquadrar o que sempre fora o seu campo de atuação, mas do lado oposto. A liberdade dela provava ainda mais que gostava dele, mas que não trazia nada de estático a quem, até na entrega, era intrinsecamente livre.
Foi a partir daí que o mecanismo de inversão, tão comum na vida dela, começou a ocorrer. André começou a deixar coexistir em si uma necessidade emocional e uma detestação intensa. Os dois sentimentos, geradores de uma ansiedade asfixiante numa pessoa despreparada a todos os níveis, formaram uma emoção única, alternante como uma bipolaridade, e que começou a necessitar de saciedade constante, sendo uma condição geradora de violência possível ou mesmo provável.
O que se passou a seguir é tristemente comum, mas sempre chocante. Para mim, que a via sempre como parte de algo na minha vida que gerava o poder de imaginar, o choque foi duradouro.
A Ana, porque não sabia reagir de outra maneira, teve a capacidade de sair de si para ser ela, através de uma naturalidade que, em muitos casos, poderia magoar pela forma como parecia ser alheia a quem quer que a rodeasse. Na verdade, tratava-se de um equívoco, mas que não sendo explicado, nuns geraria tristeza e, em alguns poucos, criava algo mais sinistro e perigoso.
A desinibição levou-a a comunicar de forma clara e serena qual o caminho que queria seguir. A reação do lado oposto começou logo por ser feita de resistência. E ela continuou. E ele falou do passado. E ela revelou o passado que tinha tido. E ele interpretou isso como um descaso, porque tudo girava em torno de si e da sempiterna necessidade que só via noutrem. E ela insistiu que tudo isso a definia. E ele falou em pudor. E ela falou na desnecessidade. E ele enfureceu-se. E ela insistiu. E ele insultou-a. E ela não aceitou e, mais uma vez, foi quem era. E ele…
Bom, o resto pode adivinhar-se.
Na verdade interessa pouco.
A Ana está viva. Até que ponto, não sei bem.
Tenho ido visitá-la à clínica onde está há seis meses. O corpo sarou rapidamente, já que as lesões não foram tão graves como poderiam ter sido. O resto é bem mais complicado.
Dou por mim, em cada visita, a falar como se fizesse gestos aos meus animais de estimação, para que eles notem que estou ali. Assim como eles, ela sabe que estou, mas até que ponto vou conseguindo captar-lhe qualquer espécie de atenção, é uma incógnita para mim.
Volta e meia sorri. Conseguimos ter conversas simples, sem que se diga grande coisa, ou entramos em memórias conjuntas e eu simplesmente tento fazer alguma coisa que a possa sentir-se fascinada por ser quem é, como eu certamente sou e sempre fui por ela. Raramente consigo. Mas falamos. Vamos falando sempre.
A Ana, naquele dia, percebeu todas as formas que podiam existir de ataque a um simples despudor. O facto de ser livre, e sem que isso significasse uma neutralidade emocional ou um distanciamento que lhe desse uma intangibilidade quase seráfica. Sabia que, ainda assim, era capaz de gostar e isso também constituía o seu despudor perante a vida.
O tempo passou e, pelo menos até agora, ela nunca retornou a si de forma integral. Será que alguma vez o fará? Como tantas coisas relativas a ela, nunca se saberá ao certo.
Talvez volte a atrever-se. Espero bem que sim. Preciso do seu descaramento para voltar a imaginar, ainda que doa, ainda que seja apenas ânsia. Não é pelo facto de os pássaros voarem bem longe do nosso alcance que somos imunes à sua beleza e ao efeito na nossa vida. Aprendo com o atrevimento dela a avaliar o que se passa, e a cada visita que lhe faço percebo mais como sempre tive menos coragem do que ela e me escondi em medos básicos e corriqueiros.
Hoje tenho nova visita à clínica.
Ainda esta noite sonhei com a sua nudez e palavras de liberdade irrestrita. Talvez me devesse envergonhar, dado o estado em que se encontra, mas não o faço. Não tenho razão para isso. É meu, e ninguém sabe ou saberá, e muito menos ela. Talvez quando ela voltar lhe conte. Talvez quando a voltar a ver, eu me atreva a fazê-lo, como ela sempre se atreveu a tudo.
Talvez se recorde. Talvez até a consiga esquecer. Talvez acabemos a conversa. Talvez, quando morrermos.


