Júlia estava em casa naquela tarde ventosa e, os ramos da árvore do quintal abanavam furiosos. Ouvia um som que percebeu ser produzido por uma ramagem que batia, sem cessar, no vidro da janela da cozinha.
O zunido na rua era assustador e ela fechou as janelas. Olhou o céu negro e carregado, com nuvens espessas de um cinzento-escuro, que não deixavam passar luz. O vento puxava os ramos com tanta força que era surpreendente as árvores não levantarem voo. Moldavam-se à vontade do vento com a destreza de ginastas a dobrarem-se no sentido que soprava. Júlia lamentou que nunca mais fosse verão. A sua estação do ano preferida.
Ouviu outro batuque, desta vez na porta. Surpreendida, chegou-se perto e perguntou:
— Quem é?
— Preciso de ajuda. O meu carro parou ali em cima, na estrada, e estou sem bateria no telemóvel. Preciso de um telefone.
“Que raio”, pensou Júlia. “A esta hora e com este tempo? Deve ser engano.”
— Desculpe. Sei que parece estranho, mas é verdade o que estou a dizer. Preciso só de fazer uma chamada — disse a voz do outro lado da porta.
Júlia abriu uma nesga e espreitou para ver a figura. A gabardina verde e fechada cobria um corpo magro e de estatura média. Segurava o capuz com as mãos para o vento não o levar.
— Entre — acabou por dizer, abrindo a porta.
— Eu não venho fazer mal. Só preciso mesmo de fazer uma chamada.
— Venha aqui para a cozinha. Tenho o telefone aqui.
O homem seguiu-a e ficou a aguardar na soleira da porta. Ela estendeu-lhe o telefone e encostou-se ao balcão. Reparou que ele tinha cabelos ondulados castanhos escuros e lábios finos, enquanto aguardava que a chamada fosse atendida. Pressionava com força o aparelho no ouvido, o que chamou a atenção de Júlia.
— Estou aqui numa casa. Fiquei sem bateria e tive de pedir ajuda. — Olhou de soslaio para Júlia. A voz do outro lado era impercetível, mas as pausas entre frases deixaram Júlia em alerta. Sentiu o estômago apertar, como se alguma coisa estivesse fora do lugar.
— Obrigado. Já vêm buscar-me — disse, enquanto devolvia o telefone.
— Sente-se enquanto espera — convidou ela.
— Acho que vou ficar em pé. Obrigado. — E ficou ali parado, de braços cruzados.
— Sabia a localização daqui? — perguntou Júlia.
— O quê?
— Para dizer a quem ligou onde têm de o vir buscar.
— Aah!! Sim…sim. Eu disse. Mais ou menos.
Ela achou aquela resposta estranha. “Mais ou menos”? Então, ele não tinha noção de onde estava. Como apareceu aqui? Seria um fugitivo?
— Então, o seu carro parou?
— Sim. Nem acendeu luz nenhuma. Desligou-se do nada. Sorte, eu encontrar esta casa.
Júlia assentiu com a cabeça, apesar de pensar que aquela não era uma zona de muito movimento. Para ir ali ter, só de propósito.
Ouvia-se o relógio da cozinha a arrastar o ponteiro entre os segundos. O vento lá fora continuava zangado, a soprar de encontro aos vidros, batendo as persianas na janela com estrondo. O som de um motor chegou até à cozinha e Júlia rezou para que fosse a boleia esperada. O forasteiro chegou-se à janela, mas afastou o olhar.
O som do motor parou, mas não se ouviu a porta a bater, nem passos na entrada. A anfitriã foi ao quarto buscar um casaco e agarrou no telemóvel.
— Vou ver se é mesmo o seu colega — disse.
Uma rajada de vento puxou a porta e, a custo, saiu para o quintal. Olhou à volta e viu muitas nuvens negras a correr com o vento no céu. O ar estava carregado de humidade e gelava as extremidades ao passar na pele.
Um carro com os faróis acesos estava parado perto do portão. Júlia não via ninguém ao volante, nem no caminho da casa. A carroçaria negra contrastava com o brilho dos metais. Os pneus todos pretos completavam o sinistro veículo. Sentiu um arrepio, que não era de frio, passar-lhe pelo corpo.
— Então, é ele? — perguntou o sujeito da gabardina com um meio sorriso, quando ela regressou à cozinha.
— Sim. Foi dar a volta ao carro — mentiu.
— Posso ir à casa de banho antes de sair? — perguntou ele.
Hesitou por um segundo a responder, mas acabou por indicar-lhe o caminho. Assim que a porta se fechou com um breve clique, tirou do armário uma grande frigideira e segurou-a pelo cabo com as duas mãos firmes. Esperou que ele saísse.
Ouviu puxar a fechadura, ficou em posição com a frigideira, tipo raquete, ao lado da porta. Esperou a altura certa. Desferiu um golpe certeiro na cara dele. O som seco do metal a bater no osso ecoou pelo corredor. Com o impacto, o sangue saltou-lhe do nariz e escorreu pela cara. A roupa foi ficando manchada de vermelho e salpicou o chão. Ele caiu desamparado.
Júlia moveu-se rápido, puxou-o para a cozinha e atou-lhe as mãos com corda do estendal. Limpou o sangue que manchava o chão e esperou que acordasse.
Ele começou por estremecer ao acordar e com um grito de dor, o homem tentava mexer-se.
— Você é doida. O que é isto? Estou amarrado. Porquê? O meu nariz!
— O carro lá fora não tem ninguém — disse num tom duro — Quem é você? O que é que quer daqui? — Interrogou-o, com uma voz dura e as pálpebras meio cerradas.
— Eu não sei. O carro seguiu-me durante muito tempo. Tentei despistá-lo e segui esta estrada que veio dar à sua porta — choramingou o homem.
— Está a inventar. De onde apareceu o carro? — confrontou-o, a tentar manter um tom firme, com o coração aos saltos no peito.
O homem tentava endireitar-se, mas com as mãos amarradas era uma tarefa difícil. O nariz ainda escorria sangue, agora em menos quantidade, mas pingava-lhe o peito da gabardina de rubro.
— É verdade. Começou por me fazer sinais de luzes e ligava o pisca para a direita. Indicava-me para parar na berma. Com a frente dele quase em cima de mim, acelerei para me afastar o máximo que consegui. Mas o carro não desistiu, as luzes batiam no vidro retrovisor e não conseguia ver nada. Olhei insistentemente para ver se reconhecia o condutor, mas não conseguia ver nada.
— Porque mentiu quando chegou? A quem ligou, afinal?
— Não sabia se acreditava na minha história. Tive um percalço com um ciclista e fugi. Vinha por aí fora quando o veículo me começou a perseguir. Por isso bati-lhe à porta e pensei que se fosse embora, assim que a tempestade passasse.
Calaram-se. No relógio da cozinha ecoavam os segundos a passar no silêncio que se fazia sentir.
Júlia foi à janela. O carro continuava parado ao portão, pintura preta brilhante e vidros esfumados. Mantinha os faróis acesos, que iluminavam o portão pequeno do quintal. Continuava à espera. Seguiu decidida para o homem e ajudou-o a pôr-se de pé. Agarrou-lhe no braço e avançou para a porta.
Estarrecido, ele parou, aflito ao perceber que o encaminhava para a rua. E ainda tinha as mãos amarradas.
— O que é que está a fazer? Para onde me leva? — sacudiu a mão dela com vigor.
Ela agarrou-o com violência e puxou-o pela cozinha.
Júlia abriu a porta energicamente. O vento soprou com mais força, como se quisesse impedir que continuasse. O prisioneiro resistia, manietado, os olhos arregalados, o nariz a pingar sangue.
— Não me leve para lá! — implorou, a voz a tremer. — Não sabe quem está naquele carro!
Não respondeu. Empurrou-o pelo quintal até ao portão. Os faróis do carro ainda estavam acesos, imóveis, ofuscando a visão. Parecia não haver ninguém ao volante. Mas Júlia sentia… alguma coisa. Uma presença.
— Abra! — ordenou e apontou com a cabeça para o portão.
Ele hesitou, trémulo. Com esforço, virou-se de costas e tentou puxar o trinco com os braços presos. Júlia aproximou-se, abriu ela mesma e empurrou o homem para fora.
O carro não se mexeu.
O homem olhou para trás, desesperado.
— Ele quer matar-me.
— Quem?
— Ele! — gritou, a apontar para o carro. — Vinha atrás de mim! Eu fiz coisas de que não me orgulho. Provavelmente até mereço, mas não quero morrer aqui, por favor!
Nesse momento, os faróis apagaram-se.
O carro permaneceu imóvel, silencioso.
Por um segundo, tudo pareceu parar, até o vento. Júlia sentiu o coração acelerar. O homem estava a chorar. Ela deu um passo atrás, pronta para fechar o portão.
Então, a porta do carro abriu-se sozinha.
Júlia arregalou os olhos. Num instinto, moveu-se rapidamente na direção do homem e deu-lhe um empurrão forte. Amarrado e com o impacto de surpresa, ele caiu no banco de trás do carro. Quando ele se apercebeu o que estava a acontecer, um grito de horror saiu-lhe do fundo do peito. Com terror, viu-se deitado dentro do carro, com as mãos amarradas, sem conseguir levantar-se. Agitava-se sem parar, como se quisesse ganhar asas para fugir dali.
A porta fechou-se lentamente. Os faróis ligaram-se e o carro deslizou pela gravilha da rua sem fazer nenhum som.
De boca aberta, Júlia assistia aos acontecimentos muda de espanto. Agarrava o casaco, com os braços cruzados, para impedir que o vento batesse no corpo. Os olhos fixos na viatura que se afastava.
A situação escapava a qualquer explicação lógica e deu por si a pensar o que teria ele feito para merecer aquele destino. O que quer que fosse, deu-lhe direito àquele requinte de boleia para o inferno.


