Autor(a):

Teresa Dangerfield
Pés de Petiz

Pantufas, o incompleto

Ia realizar-se um concurso muito divertido para gatos e gatas: um desfile em que todos os concorrentes tinham de apresentar um par de pantufas, ou algo que se parecesse.

A excitação foi contagiante, quando souberam que o júri era formado por verdadeiras celebridades felinas: o Gato das Botas e a Duquesa, vindos de Paris, o Gato do Chapéu e o Garfield, da América, o Gato Risonho, de Inglaterra e a famosa Kitty, do Japão. Nem que fosse só para os verem ao vivo, correram a inscrever-se. E os bilhetes, para quem quisesse apenas assistir, esgotaram-se numa fração de segundo.

Vieram gatos e gatas de todo o país. Alguns traziam pantufas combinadas com luvas e outros pantufas de marca, pois achavam que a ocasião merecia. Houve até quem trouxesse pantufas diferentes em cada pata – arte pura, diziam.

Chegou o dia por que todos ansiavam. Antes da hora marcada, o teatro estava a encher–se. A passadeira vermelha estendia-se diante da entrada. As câmaras disparavam ‘clique, clique, clique’, e os miados de excitação “Miau, miauuuu, miauuuu” misturavam-se com o som dos passos macios e elegantes, dos membros do júri e do público, que se aprimorara para uma ocasião tão especial. Afinal, não era todos os dias que recebiam tais celebridades.

Estava quase na hora de começar o desfile, quando se deu pela falta de um dos concorrentes inscritos. A sua cadeira estava vazia.

 De repente, fez-se um silêncio abrupto: entrou um gato peludo e sereno, sem pantufas nos pés.

— Não podes participar — disse Romeu, um dos gatos que estavam na fila da frente. — As regras são claras!

O gato olhou para ele calmamente:

— O meu nome é Pantufas. Sempre foi. Até está escrito na minha cadeira. Estas patas peludas foram a razão desse nome. — Ao dizer isto, levantou uma delas com elegância — Preciso mesmo de algo mais?

            Ouviu-se um enorme burburinho, todos a falar ao mesmo tempo e cada um a dar a sua opinião. Gatos persas e angorás, indignados, reclamavam: “Não pode ser!”; “Eu também tenho patas peludas”; “Eu também!”; “Eu também!”; “Eu também” “Isso não chega!” “Falta alguma coisa! Está incompleto!”

Então, o Gato das Botas, como o seu ar imponente, ergueu a voz:

            — Ordem! Silênnncio! — E se ele tiver razão? E se a incompletude for precisamente o mais requintado? Vejam bem! — disse, apontando para uma das filas em que os concorrentes estavam sentados. — Ali mais atrás, há quem tenha pantufas em forma de patas peludas. Então, vamos excluir alguém por ser… natural?

            Viraram-se todos na direção indicada. Félix, o gato que tinha as pantufas em forma de patas peludas, protestou:

  • Não é justo! Isto é um concurso de pantufas. Ninguém nos disse como as

pantufas tinham de ser.

— Ora aí têm a vossa resposta — disse o Gato do Chapéu. — As regras não dizem que é proibido ser diferente. Talvez o incompleto tenha o seu próprio charme. Quem quiser, pode concorrer ‘descalço’. Quem sabe se não é aí que está o verdadeiro estilo. Que acham os meus amigos jurados?

Nessa altura, os membros do júri murmuravam entre si. Garfield sorriu, pouco preocupado. — Estava com fome e queria despachar-se. Pensava em lasanha.  O Gato Risonho achava tudo uma maravilha.

            Ainda se ouviam protestos.

            De repente, Duquesa ergueu-se. Todos os gatos ficaram em sentido. Quem poderia resistir àqueles olhos azuis, brilhantes? Quanto às gatas, abriram muito os olhos, para verem melhor a sua coleira de ouro e diamantes.

Mes Chéries, …bien, moi, je pense que há requinte no inesperado, no diferente. O incompleto, digamos, o inacabado, pode ser mais elegante do que o completo. Concordo com o meu colega, o Gato do Chapéu.

Antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa, todos se levantaram e bateram palmas. Só se ouviam miiiados de aprovação.

— Só mais uma coisa — disse o Gato das Botas tentando chamar a atenção. — Os concorrentes também podem votar.

Todos os outros membros do júri concordaram. Os concorrentes  ronronaram  e aplaudiram, em sinal de aprovação.

O Gato das Botas encheu o peito de ar, orgulhoso da sua ideia.

            A Kitty ainda não tinha falado. As gatinhas, em especial, ficaram atentas quando ela se levantou. Ouvia-se aqui e ali:

            — Que estilo!

— Eu quero um lacinho como o dela! 

— Vou pedir-lhe um autógrafo.

Até que se fez um silêncio total e todos os olhos se fixaram nela:

            — Com Pantufas ou “Patas Pantufas”, todos merecem desfilar. Afinal, ser diferente é o que nos torna únicos! Não acham tão amoroso?  Tão querido? Vamos a isso! Miauuuu!

            Palmas e mais palmas. Kitty levantou a pata direita e declarou com um miau doce e vibrante:

— Que comece o desfile!

E assim foi.

           O desfile decorreu no meio de muitos miados felizes, palmas animadas e montes de selfies.  E, no final, quando o júri e os concorrentes votaram, ninguém se espantou com o resultado:

            Pantufas, o gato sem pantufas, foi o vendedor!

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AUTOR(A)
Teresa Dangerfield

Teresa Dangerfield nasceu em Lisboa, em 1956. É Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Português e Inglês), pela Universidade Clássica de Lisboa e Mestre em Tradução, pela Universidade de Bristol (RU). Foi docente do Ensino de Português no Reino Unido, onde reside há mais de 30 anos.  Foi também Docente de Apoio Pedagógico na Coordenação do Ensino Português no Reino Unido. É tradutora e dedica-se à escrita, uma paixão que a acompanha desde a infância. Para além das publicações na revista Palavrar, tem contos e alguns poemas integrados em coletâneas.

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