E Ele disse: Eis que Eu venho em breve.
Depois, calou-Se.
Ninguém sabe ao certo quando foi a última vez que Deus falou. Os teólogos dizem que foi no Apocalipse. Os outros, a maioria, desistiram de procurar respostas.
Eva Mira, investigadora de linguística e tradição bíblica, cresceu entre as palavras que a mãe nunca disse e os versículos que o pai recitava de cor. Foi o pai quem lhe ensinou a distinguir o som da palavra e o peso da ausência. Com a mãe, aprendeu a escutar o que nunca chegava a ser dito. Foi num domingo chuvoso que os perdeu. Um carro desgovernado, uma estrada molhada, Eva ao volante. Não teve culpa, mas a culpa não costuma ouvir razões ou aceitar desculpas.
Muitos anos passados, naquela manhã também chuvosa, acordou antes do despertador. Os gatos dormiam enroscados no tapete da cozinha. Preparou o café, ligou a rádio, ouviu por alto as notícias: mais um ataque informático, protestos contra a nova lei da linguagem neutra, frio fora de época. Nada lhe parecia urgente.
Lá fora, Lisboa respirava cedo: trânsito, buzinas espaçadas, crianças a protestar contra as mochilas. Engoliu o resto do café, bichanou com ternura aos gatos, atirou a chávena para o lava-loiça e pegou no casaco. Ao sair, não pensou no trabalho que a esperava. O elevador cheirava a cansaço.
Quando chegou ao gabinete, ligou o computador com a lentidão habitual. A primeira notificação surgiu antes de qualquer programa abrir por completo:
«Nova entrada – Base de Fragmentos Não Canónicos. Proveniência: Capadócia, via Biblioteca de Marselha. Estado: incompleto | danificado | urgência: moderada.»
Eva abriu o ficheiro, a imagem era imperfeita: um pergaminho antigo, fragmentado. apenas uma linha legível em siríaco, com traços gastos. A tradução automática surgiu hesitante:
«Eis que vim.»
Voltou a ler. Depois procurou o verbo nos dicionários, confirmou a conjugação. Vim. Passado. Uma conjugação que, naquele contexto, mudava tudo. Se estivesse certo, o fragmento contrariava séculos de exegese: Deus não viria, já teria vindo.
Ampliou a imagem, comparou com outras variantes conhecidas do Apocalipse. Nenhuma trazia essa forma. Nas traduções mais antigas, o habitual era «venho« ou «chegarei em breve». Mas aquele verbo «vim» estava ali, impossível de ignorar.
Pensou em escrever ao colega de Marselha, o responsável por aquele acervo. Hesitou. Talvez fosse apenas erro de transcrição, uma falha no reconhecimento automático.
Recordou a mãe, mulher de poucas palavras. Eva passara a infância a tentar decifrar-lhe os silêncios, a antecipar frases não ditas. Desconhecia se era escutada, mas sabia que havia ali presença.
— Estás aqui desde que horas?
A voz de João, colega de gabinete, fê-la levantar os olhos. Trazia café e o cansaço dos dias iguais. Espreitou o monitor.
— Fragmento novo?
Eva fechou a janela com um clique automático.
— Siríaco. Variação de texto.
João assentiu, ficou de pé, a bebericar.
— Às vezes penso se ainda há algo por descobrir. Já tudo foi encontrado, não?
Ela encolheu os ombros, o olhar pousado num ponto que não era ali.
— Talvez já tenha aparecido. E ninguém percebeu.
João sorriu, meio caminho entre a troça e a curiosidade.
— Isso dava um belo título: «A Revelação em que Ninguém Reparou.»
E saiu, com passos a rasgar o chão.
Eva abriu o fragmento. «Eis que vim» ainda estava lá: três palavras, três sílabas que não desapareciam.
Nos dias seguintes, tentou ignorar o assunto. Classificou o fragmento como inconclusivo, evitou comentá-lo com os colegas, manteve a rotina: trabalho, compras, e-mails. Notava uma espécie de descompasso; tudo parecia igual e, no entanto, nada estava como antes.
As palavras dos outros ganhavam outra dimensão, reparava nas frases suspensas: «Logo vejo, depois falamos, é só uma fase, isso passa.» Começou a escrever no caderno de notas e aquela frase repetia-se como uma pulsação:
«Eis que vim.»
Uma noite, voltou à Bíblia do pai. Era agnóstica, mas os sublinhados e as anotações nas margens revelavam uma intimidade antiga com as Escrituras. Abriu no Apocalipse, capítulo vinte e dois, versículo doze: «Eis que venho em breve.» Fechou o livro.
No caderno, escreveu: «E se Ele veio? E se o silêncio for a resposta?»
Na manhã seguinte, tinha o café na mão quando o locutor da rádio anunciou a descoberta, no sul da Turquia, de um mural cristão antigo, escondido atrás de uma parede desmoronada. A inscrição por baixo da imagem dizia apenas:
«Já estive aqui.».
Quase deixou cair a chávena no chão. A frase era outra, mas o sentido colidia com o que lera dias antes: três palavras, tempo verbal no passado.
Fotografou o caderno, a anotação, num gesto infantil, como se precisasse de prova para si própria.
Ao fim da tarde, João passou junto à sua secretária.
— Tens um minuto?
Sentou-se à frente dela de telemóvel na mão.
— Também recebi o fragmento, vi a notícia do mural. Há alguma coisa aqui que…
Não concluiu. Eva abriu o caderno, procurou a página. Três frases:
«Já estive aqui.»
«Eis que vim.»
«Eis que venho.»
Escreveu por baixo para que o colega lesse: «E se sempre foi assim? Ele fala. Depois, cala-Se e o resto é connosco?»
Uma memória antiga emergiu: tinha oito anos, o pai lia um salmo em voz alta, a mãe lavava a loiça. Ao chegar à última linha, o pai calou-se, a filha esperou a explicação, mas ele saiu da sala e a mãe não disse nada.
Agora, percebia: nem tudo precisava de resposta, o silêncio não era ausência: era também linguagem.
Viu então o acidente com uma nitidez que julgava esquecida: o som do impacto, o vidro a partir-se, o cheiro a queimado e, entre o caos, a imagem da mãe com a cabeça tombada, os olhos abertos e os lábios mexiam-se: «Salva-a, meu Deus. Sempre te escutei.»
Não sabia como se esquecera, talvez nunca tivesse esquecido, apenas não estava pronta para se lembrar.
Desde então, Eva falou menos, não por tristeza, nem por descrença. Pela primeira vez, sentiu que não precisava de acrescentar ruído.
Começou a caminhar até ao trabalho, deixou de ouvir podcasts, evitava as redes sociais, os recados apressados que caíam na noite, pedras num poço, os sons à sua volta: passos, pássaros, respirações, as conversas ditas e as que não passavam da intenção.
Na rua, continuavam os protestos, as verdades de megafone, as frases moldadas para ninguém se escutar e Eva ouvia, E naquele gesto de escuta, encontrara uma nova forma de fé: talvez Deus tivesse vindo, talvez nunca tivesse partido. Talvez, só falasse com quem sabia estar em silêncio.