Talvez porque não era só tabaco a matéria que saía em torvelinhos do meu cachimbo de arievilo, tomei-me da ideia de me despir completamente para Anieska. Estávamos nus sobre a cama, acobertados pelo calor húmido de agosto, mas o refinamento da minha consciência insistia no luxo da honestidade, a qualquer preço. Os meses de relacionamento cristalizavam numa intimidade desassombrada, vibrátil, completa. Não nos permitíamos romantismo ou emoções adolescentes.
Talvez porque fosse egoísmo não querer carregar o fardo do segredo para todo o sempre, disse-lhe de rompante que era um pé-de-cabra. Riu-se como quem observa uma criança tola a brincar ao faz-de-conta. Porém, eu não fingia. Não sou sequer um humano como tu, expliquei-lhe. Ela empurrou-me com a mão como quem afasta um tolo inconveniente. Chega-te para lá, que este lado da cama já está ocupado com uma maluca. Não há espaço para duas pessoas delirantes na mesma cama. Ai, se fosse delírio. Tenho pés de cabra. Não será de bode?, retorquiu. Aquilo que vês, o jornalista que conheces e com quem te deitas tem cascos e pernas de cabra, não acreditas? Acredito, pois. Amanhã mesmo vou colocar essa informação na primeira página do nosso jornal. Queres que faça uma reportagem.
Na cozinha. bebi uma poção que quebrava o feitiço de vera-figura e voltei para o quarto. Anieska gritou horrorizada, encolhendo-se na cabeceira da cama. Ainda sou eu, sossega, apenas te revelei a minha forma natural de sátiro. Os seios nus tremiam afónicos, incapazes de proferir uma palavra, incrédulos, espavoridos. Anieska, neste mundo existem forças que não compreendes, nem imaginas existir, contudo isso não significa que tudo conspira contra ti. Olha para mim, sou o mesmo Eduardo, o teu Eduardo, o teu colega de redação, o teu amante! Ri-me por entre os golfões adocicados que ferviam no cachimbo. Desprendi-o dos lábios e ofertei-lhe, como se fôssemos indígenas de tribos belicosas dispostos a enfrentar ódios e medos.
Meia hora num estado quase catatónico, gaguez, tremelicante, às portas de um desmaio. Depois, fumou. Os pulmões desarticulados puseram-se em sincronia. Cobriu-se com o lençol, como uma nova Eva apanhada de chofre pelo pudor. Sereno, expliquei o meu mundo, as linhas gerais da luta entre os obscuros e os seres mais luminosos. Ao fim de três horas quis tocar o meu corpo, tudo. Sentir o pelo grosso, as orelhas apontadas, os cascos redondos. Por fim, aceitou o novo mundo, a existência de um bestiário que ultrapassava qualquer ficção. Seria a minha aliada secreta, a humana intrometida que desafia as forças imprevisíveis de um universo hostil.
Eu continuava a ser eu e Anieska perdurava no seu perfume de emancipação e graça juvenil, negando a si própria a entrega ao medo, ao tolhimento do espírito. Nunca desejou que a vida fosse rotina. Nunca desejou a normalidade. Agora, tinha-me ao seu lado… nu.