Autor(a):

David Roque
Gaveta Criativa

Ficção como real?

Em que comunicam O Primo Basílio e Madame Bovary? Será pela semelhança da pilosidade supralabial de Eça e Flaubert? O bigode farto assumia-se apenas como modismo da época aproximada em que viveram, mas o que unia ambas as escritas era modelarem-se ao realismo literário, a tendência que começa a ganhar hegemonia a partir da segunda metade do século XIX.

Se é verdade que a ficção literária não é jornalismo, também é assumido que pode manter forte ligações com a realidade, como fotografia ou manifesto. A palavra escrita, dado o poder que carrega, tanto pode servir para o ludismo, como para a consciencialização do leitor sobre factos sociais indolentemente retratados por outros media.  Bovary retrata o casamento desamoroso e cínico do protocolo aristocrata e burguês do século XIX e o consequente emparedamento feminino. Noutra escala e geografia, o primo Basílio vem atentar o casamento quase perfeito da prima Luísa. A sinuosa vida amorosa da burguesia, escrita para burgueses lerem e refletirem.

Zola: criminosos, presidiários, revoltosos, operários fabris, costureiras, sacerdotes, polícias, aristocratas, freiras, estalagens, traficantes, pobres, militares… Diríamos a fauna dos estratos mais baixos da sociedade. Os moleques de Capitães da Areia estão também neste nível, pobres e marginais, guiados por códigos alternativos aos da boa sociedade. Neste caso, trata-se do neorrealismo, um segundo recrudescimento de preocupação social na literatura, com expressão entre os anos 30 e 50 do século XX. Nos melhores autores, que são estes vários casos, a literatura dialogante com a realidade oferece-nos quadros impressionantes de análise social e de reflexão sobre marginalidades. Nos escritores de menor fluência criativa, o realismo pode descair para o mero panfleto político, assumindo formas maniqueístas e caricaturais. Arte subjugada a objetivos utilitários.

Nesta década de 20 do século XXI sentimos também um recrudescer do movimento, mas na maioria das vezes na sua forma mais instrumental ao serviço do ativismo ideológico. O escritor, como qualquer artista, deve meditar sobre as fronteiras e penetrações entre a arte enquanto expressão da ficção narrativa, que traz sempre o toque da imaginação, e o discurso político e filosófico que versa sobre a pólis, o mundo concreto que habitamos. Não se pode alegar que não há diálogo entre estas duas visões, aliás aqueles autores atrás referidos demonstram uma boa articulação entre o discurso livre da criatividade e a palavra comprometida da consciência humana. A crítica deve ser maior quando o criativo se sujeita a ater-se ao real da forma mais primária possível, desconsiderando os caminhos da geração do novo, esquecendo a sublimação da matéria rotineira em inesperado vapor.

Em suma, a literatura pode prestar-se à representação da realidade, como o demonstram realismo e neorrealismo, mas não deve omitir a sua origem na mente fantasiosa do indivíduo, onde imagens novas fervilham, numa sala de espelhos circense e repleta de cor. Infinitude.

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AUTOR(A)
David Roque

David Roque nasce no ano de 1977, em Portimão, depois reside em Ferragudo, terra de acolhimento e de eleição. Fez o ensino secundário em Portimão e licenciou-se em História pela Universidade de Lisboa, em 2001, tendo posteriormente feito uma pós-graduação em ensino, em 2003. É professor de História desde então, no ensino básico e secundário. Comprometeu-se com o associativismo através da Associação Cultural e Desportiva de Ferragudo, diretamente vocacionado para a área cultural e de gestão do espaço infantil. Em 2009, ingressa na vida política e partidária, como instrumento de participar na transformação da sociedade. Na literatura, assume desde o princípio do século a animação de oficinas de escrita criativa e a fundação de um clube nessa área. Tem publicadas duas histórias infantis, poesias em coletâneas e uma obra historiográfica recente, para além da redação de artigos em vários jornais

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