Autor(a):

Paulo Pereira
Paulo Pereira
Sententia

A Velha Desordem Mundial

O mundo chegou a um ponto de vileza tal que a falsidade se disfarça de verdade. Querem fazer-nos crer que talvez estejamos enganados e a realidade não seja bem a realidade. Que talvez estejamos distraídos e não sejamos capazes de reparar naquilo que, de facto, está a acontecer à nossa volta. Talvez? Não.

A verdade é que, por todo o lado, se impõe a desumanidade, a falta de escrúpulos, a mentira e a crueldade. Quando um aprendiz de ditador decide invadir outro país soberano e bombardeia civis, numa sádica base diária, indiferente a quaisquer regras do direito internacional, são bem evidentes as suas intenções. Promove massacres de adultos e de crianças, destrói escolas, hospitais e infraestruturas básicas com a mesma indiferença com que almoça por entre o luxo todos os dias.

Quando outro imitador de autocrata usa o genocídio de um povo como arma para disfarçar as falhas de segurança que permitiram um ataque terrorista, fingir interesse no resgate de reféns, eternizar-se no poder, fugir a um julgamento por corrupção e agir sem qualquer tipo de controlo da “comunidade internacional” (que, pelo contrário, lhe admite todos os atos de barbárie sem qualquer consequência), não estão dissimuladas as suas intenções. Também ele bombardeia civis, numa sádica base diária, indiferente a quaisquer regras do direito internacional. Também ele promove massacres de adultos e de crianças, impede a chegada de ajuda humanitária e, com isso, mata pessoas à fome e à sede, destrói escolas, hospitais e infraestruturas básicas com a mesma indiferença com que janta por entre o luxo, todas as noites.

Quando um terceiro psicopata regressa ao poder e ataca as bases do sistema democrático, persegue pessoas, manifesta vontade de anexar territórios e/ou países, proíbe certas palavras e certos livros (?!), ataca direitos, liberdades e garantias, ameaça aliados, inventa tarifas para espatifar o comércio mundial, retira o seu país de nucleares acordos e organizações internacionais, anuncia uma decisão e o contrário disso em intervalos cada vez mais curtos, é fácil identificar o que está em causa: chama-se delírio e está a causar danos mundiais, alguns deles irreparáveis, todos os dias.

Estes são apenas três exemplos do que está a suceder à escala planetária. Autocratas pululam pelo mundo, promovendo e financiando réplicas de tiranetes, que mais não são do que tentativas baratas de imitação: os mesmos tiques de autoritarismo; a mesma linguagem suja e mentirosa; as mesmas armas vis de manipulação e desinformação através das redes sociais; a mesma sede de poder desmesurado; o mesmo vazio de ideias. Apenas o grito e o insulto como armas quotidianas.

Por toda a parte, o ódio pelos mesmos de sempre é alimentado sem qualquer limite. Ao mesmo tempo, um saudosismo doentio e bolorento dissemina e promete falsos regressos a passados alegadamente gloriosos. Se as sociedades não estão bem, a responsabilidade é do imigrante, do estranho, do desconhecido, do outro. Os retrocessos em áreas como a dos Direitos Humanos são devastadores. As mulheres sofrem com o recrudescimento da violência patriarcal, enquanto as conquistas que demoraram séculos são desconsideradas. Minorias são perseguidas em flagrantes atos discriminatórios. A indignidade tornou-se prática corrente. Apouca-se a cultura. Troca-se ciência por ignorância. Inteligência por disparate. Rigor por deseducação.

Nos meios de comunicação, cada vez mais desprotegidos e sem recursos para cumprir as suas missões essenciais de salvaguarda das democracias, não falta quem pretenda convencer-nos de que se trata da instauração daquilo a que chamam “Nova Ordem Internacional”. Mas, se a desregulação é o principal símbolo de quem patrocina todas estas manobras insalubres, mesquinhas e cobardes, como pode incluir-se a confusão e o caos na escala da ordem? De facto, o que se desenha é uma espécie de Velha Desordem Mundial, num cenário de assustadora semelhança com os anos 30 do século passado, altura em que os fascismos se afirmaram e conduziram o mundo à barbárie da Grande Guerra e do Holocausto. As características dos “homens providenciais” de então em pouco diferem das dos autocratas da atualidade. Basta recordar algumas delas: culto exacerbado e centrado na sua pessoa, assim como um nacionalismo profundo; fixação doentia no poder militar; racismo e xenofobia no topo do projeto para o respetivo país; expansionismo territorial como aspiração; idêntico desprezo pela liberdade e pelos direitos; a mesma estratégia de atribuição de culpa e responsabilidade pelos males da sociedade a bodes expiatórios como as minorias; controlo ideológico, traduzido em constantes campanhas de desinformação e mentiras, agora nas redes sociais.

Se este fosse o futuro da Humanidade, não haveria futuro. O futuro da Humanidade só pode ser a solidariedade. A defesa intransigente da Democracia, do Estado de Direito e dos Direitos Humanos. O julgamento e a aplicação das devidas penas aos assassinos e criminosos que se aproveitam do poder com rapidez e eficácia.

Mudaram os meios. Acelerou a difusão das mensagens. Mas, por muito que nos vendam táticas velhas como novas, elas não deixam de ser miseráveis e repugnantes. Agora, como há quase cem anos.

 

 

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Paulo Pereira
Paulo Pereira

PAULO JORGE PEREIRA nasceu a 13 de agosto de 1970 em Lisboa. Licenciado em Comunicação Social pela Universidade Nova de Lisboa (FCSH), a paixão pelo Jornalismo levou-o a trabalhar, a partir de 1992, em jornais como A Bola, Record, Diário Económico e Jornal Económico. Em 2017 trabalhou no Sindicato dos Jornalistas e publicou o romance “Filhos da Primavera Árabe”. De janeiro de 2018 a maio de 2019 foi chefe de redação do semanário Contacto, jornal português no Luxemburgo. Em maio de 2021 entregou a Carteira Profissional de Jornalista, exercendo funções como assessor de imprensa do Ministério do Ambiente e da Ação Climática até abril de 2024. Desde setembro de 2024 trabalha como assessor de imprensa do LIVRE no Parlamento.

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