Autor(a):

João Ventura
João Ventura
Crónica do Viajante

A região mais tenebrosa

Olho o atormentado autorretrato do escritor e artista Bruno Schulz (Drohobycz, 1892-1942), desenhado a lápis grosso, exposto na retrospetiva “O país tenebroso”, no Círculo de Bellas Artes, em Madrid. E na transparência do vidro de onde Schultz me observa com olhos amedrontados, intuo na intensidade desassossegante de cada traço riscado sobre o papel “o rosto de um homem que nunca fez as pazes com a vida”, tal como Isaac Bashevis Singer, também judeu polaco e cronista da diáspora judaica, já havia notado numa entrevista concedida a Philip Roth, em 1976 (Parlonstravail).

Fixo o meu olhar na figura que parece querer libertar-se da prisão de vidro e o que vejo é uma feição kafkiana, simultaneamente assustada e feliz, fugindo à claridade do dia para se refugiar nas “regiões do destino onde reina a solidão”.

A exposição abre com dois autorretratos, espécie de umbral da sua paixão pela própria efígie, que aflora em múltiplas composições: desenhos e obra gráfica, cartas, fotografias, velhos jornais, álbuns de selos e postais da longínqua cidade Drohobycz, que em As lojas cor de canela, um dos livros da biblioteca de quarto escuro de Enrique Vila-Matas, “se converte para sempre na mais bela de toda a história da literatura” (Da cidade nervosa).

Percorro toda a trajetória do autor: recordações de infância e a visão asfixiante da provinciana e tranquila cidade natal, onde viveu e ensinou desenho no liceu. Drohobycz, pequena cidade situada na Galícia, Polónia, atualmente parte da Ucrânia, é o lugar de todos os terrores e de todas as maravilhas: praças, ruas obscuras, terrenos baldios, a loja de tecidos do pai, tudo serve a Schulz para, num estilo barroco, e como um predestinador de inspiração bíblica, colorida e irónica, pôr em cena o quotidiano de uma cidade de província polaca, metamorfoseada num cenário fantasmal.

Conforme o próprio Schulz confessa numa carta enviada à amiga Romana Halpern, “As lojas de canela emergiu gradualmente das [suas] cartas. A maior parte foram escritas a Debora Vogel”, escritora residente em Lwóv que conhecera em 1930 (Lettersanddrawingsof Bruno Schulz: withselected prose). De mão em mão, o conjunto desses textos fascinantes, fragmentos de autobiografia fantástica, contos assombrados pela claustrofobia e por um imaginário luxuriante num labirinto barroco de tesouros de infância perdidos haveriam de chegar à editora Roj, de Varsóvia, que os publicou em 1934, com o título As lojas de  canela.

Apenas dois livros de contos publicados, que resultam das cartas que escreveuAs lojas de canela, e O sanatório sob o signo da clepsidra.Existiria um outro, O messias, mas o manuscrito ter-se-á perdido.WitoldGombrowicz descreve Schulz como um homem “frágil, estranho, quimérico, reservado, tenso, quase incandescente”, “um gnomo com uma cabeça desproporcionada, demasiado amedrontado para ter a coragem de existir, rejeitado pela vida, alguém que se movimentava sorrateiramente nas suas margens” (Journal, Tome II, 1959-1969).

Alguém que se escondia nas sombras, fechado na prisão de loucos que era a sua casa, “uma destas casas sombrias com fachada cega e vazia”, na Praça do Mercado, em Drohobycz, nos confins da Galícia, que Schulz descreve como uma “cidade dada a mergulhar na cinza crónica do crepúsculo, a enfeitar os seus contornos com uma lepra escura, um bolor felpudo, um musgo cor de ferro”. A penumbra mal iluminada da labiríntica casa paterna onde nasceu, com as suas paredes gretadas, tocas de ratos que percorriam a noite, enormes armários de madeira carcomida pelo caruncho, largas camas sempre por fazer, o tique taque contínuo dos relógios de parede, foi a inspiração fantasmagórica dos contos e obra plástica.

E do lado de fora da casa, todo o cenário de um dédalo de ruas, ruelas e pátios para onde se escapava como num estado de depressão profunda, entre “polacos ucranianos e judeus, lado a lado ou misturados, ou talvez nem uma coisa nem outra”, e onde viria a ser assassinado com uma bala na nuca pelos nazis, numa manhã fria de Novembro, em 1942. Ruas crepusculares com as sombras sépia e lojas cor de canela, que Schulz gostava de contemplar nas noites de Verão “como um livro mágico”: as tabernas, a farmácia, a pastelaria, a chapelaria, o oculista, a livraria, o Liceu. Os manequins. Carros rodando puxados por cavalos. E o bestiário carnavalesco onde desfilam cães, gatos, pássaros, raposas, borboletas. O paraíso perdido da infância na pequena cidade de província revisitado na escrita com os olhos da criança que nunca deixou de ser.

“Ruas que se multiplicam, se enredam, se confundem entre si”, percorridas por um “dandy metafísico” como lhe chamou Gombrowicz. A rua dos crocodilos onde “tudo era cinzento como nas fotografias monocromáticas”. Uma rua de alfaiates, como aquele que se transforma num antiquário e livreiro especializado em matéria erótica. Território de metamorfoses absolutas, de emanações coloridas por detrás das lojas noturnas atravessadas por carros atrelados a cavalos.

E em O sanatório sob o signo da clepsidra, uma prosa delirante, envolta numa aura fantástica que embala o quotidiano privado da adolescência mitificada do jovem Joséf (alter ego de Schulz), com arquétipos universais fortemente imagéticos a narrativa histórica e geopolítica do fim de um império austro-húngaro.

Num exemplar do Hebdomadário Ilustrado, de Varsóvia, que escapou à voragem destruidora do seu espólio literário, e numa carta dirigida a Stanyslaw Witkiewicz, Schulz explica a génese da sua obra plástica: “Ainda eu não sabia falar e já enchia quantos papéis encontrava, e as margens dos jornais, com garatujas que despertavam a atenção de quem vivia comigo. Comecei por fazer sempre carros atrelados. O percurso de uma viagem de fiacre parecia-me cheio de importância e simbologia oculta. Com seis, sete anos, nos meus desenhos aparecia sempre a imagem de um fiacre de capota abaixada e lanternas acesas, a sair de uma floresta noturna” (Letters and drawings of Bruno Schulz: with selected prose). E em As lojas de canela: “Nunca me há de esquecer esta corrida luminosa na mais clara noite de um Inverno. O mapa colorido do firmamento transformara-se numa cúpula enorme onde se acumulavam continentes e oceanos fantásticos cortados pelas linhas dos turbilhões e das correntes estelares, riscos brilhantes da geografia celeste”.

Mas havia outro Schulz, o da pintura, aquele que desenhou um alfaiate ajoelhado aos pés da cliente nua, junto aum manequim. Uma vocação anterior à escrita, de habitante de um país ainda mais tenebroso do que aquele que atravessamos nos contos. “Ocupava os ócios a desenhar: numa paisagem de província, para lá da praça vazia do Município, um fiacre a trote levava mulheres nuas com meias e chapéus de palha; machos franzinos de cabeça imensa e olhos febris arrastavam-se aos pés de raparigas sentadas com indolência numa poltrona”, como conta – citado por Aníbal Fernandes no prefácio à edição portuguesa de As lojas de canela -, o crítico Arthur Sandauer que uma vez lhe apareceu em casa.

E sempre as “cortesãs apocalípticas”, colegiais perversas, mulheres maduras, indiferentes e dominantes, nuas ou seminuas, de chicote, anões e velhos rastejando, gatinhando, fetichistas idolatrando-se, lambendo o próprio corpo, eis a tribo de párias que, em procissão ou solitariamente, habita a região obscura refletida na obra plástica. Particularmente interessante, o “Encontro” [numa ruela da sua cidade natal, um judeu cumprimentando cerimoniosamente duas tentadoras, provocadoras prostitutas], óleo sobre cartão, de 1920, único exemplarsobrevivente da pintura, excetuando dois fragmentários e deteriorados vestígios recuperados daquilo que foi o seu testamento plástico, o mural com cenas de contos que realizou para o quarto do filho do Hauptscharführer Félix Landau, membro da Gestapo e seu protetor durante o aziago tempo emprestado que precedeu o seu assassinato. 

E donde emana a filiação artística de Schulz? No seu ensaio que integra o magnífico catálogo (El país tenebroso de Bruno Schulz), Mónica Poliwka, historiadora de arte e comissária da exposição, escreve que há dois círculos concêntricos na sua obra. Um que estabelece a confluência com a pintura polaca da época: Witold Wojtkiewicz e Wojciech Weiss e, logo, a coincidência geracional com Stanyslaw Witkiewicz. E outro, mais amplo, que remonta essa filiação até uma bem precisa deriva negra da arte europeia, onde encontramos a presença seminal de Goya e de Georg Grosz, como sombras tutelares.

Comparado a Kafka, a Musil, a Rimbaud – e também a Chagall pela sua obra gráfica – Schulz é todos eles ao mesmo tempo. Segundo Isaac Bashevis Singer, que descobriu a sua obra em 1963, “às vezes escrevia como Kafka, outras vezes como Proust, e conseguiu atingir as profundidades da alma às quais nem um nem outro acederam”, Mais tarde, na já citada entrevista a Philip Roth, acrescentou: “Quanto mais leio Schulz, mais o considero melhor que Kafka”.

Contemporâneo de Stanyslaw Witkiewicz e de Witold Gombrowicz, Schulz formou com ambos a base da vanguarda literária polaca, reabilitada pelo crítico Artur Sandauer após um e outro terem sido proscritos pelo regime comunista. Isaac Bashewis Singer e Tadeusz Kantor reconhecem-lhe a influência na sua obra, tal como a Cynthia Osyck, que escreveu o romance O Messias de Estocolmo sobre a busca do manuscrito perdido do romance schulziano, e PhilipRoth, Jonathan Safran Foer, Roberto Bolaño e Sergio Pitol. 

 

 

 

 

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João Ventura
João Ventura

Fui durante largos anos professor de língua e literatura portuguesas, e durante três anos, de cultura portuguesa na Sorbonne, em Paris. Também lecionei na Universidade do Algarve cadeiras de gestão cultural e exerci o cargo de Diretor Regional de Cultura do Algarve. Fui bibliotecário. E fui diretor do TEMPO.

Como professor, bibliotecário ou gestor e programador cultural, a crónica da minha trajetória profissional tem duas marcas que a definem: a opção pelo sector público e pela criatividade. Por isso, a minha formação e aprendizagem nunca a dou por concluída, seja regressando uma e outra vez aos bancos da universidade seja através da leitura e das viagens que são outras duas marcas da crónica da minha aventura pessoal.

Gosto de ler, escrever e viajar. E estas três atividades furtivas ligam-se entre si. Umas vezes, leio e viajo para escrever. Outras vezes, leio e escrevo para viajar em seguida aos lugares que antecipei em crónicas de viagem inventadas. Destas deambulações, umas vezes literárias, outras geográficas, fui deixando rastos no papel. Na revista Atlântica, cujo projeto editorial criei e da qual fui diretor, e nos blogues O que cai dos dias, O leitor sem qualidades e, agora no blogue nómada Fora daqui.

Gosto de me ver como um criador de projetos culturais, alguém que faz acontecer ideias seja na vida profissional seja na vida privada. Atualmente, trabalho na Biblioteca Municipal de Portimão, desenvolvendo ideias e projetos de divulgação do livro e da leitura. E tenho em mãos, a escrita de um livro de crónicas de viagens literárias. Também gosto de cozinhar.

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