“A biblioterapia procura essencialmente (…) permitir ao Homem escapar a um encarceramento do destino (…) procura sistematicamente sair de qualquer enclausuramento fatal (…).”
Marc-Alain Ouaknin em “Bibliothérapie: lire c’est guérire”
Admito nunca ter pensado na biblioterapia exactamente nestes termos, mas, perante o desafio proposto para esta edição da Palavrar, ouso afirmar, poeticamente, que a prática biblioterapêutica se alicerça com requinte sobre dois pilares inacabados — as histórias e o ser humano.
As histórias, porque, numa óptica assumidamente existencial e subjectiva, a biblioterapia as considera inesgotáveis, sempre abertas a interpretações novas em função da personalidade, da experiência de vida e da plataforma de conhecimento de quem as lê, as ouve narrar ou vê dramatizadas; e o ser humano, porque a biblioterapia o considera dinâmico e pressupõe a sua disponibilidade para a impermanência, para a mudança, em oposição a posturas rígidas, intransigentes, isto é, acabadas.
Este lidar diário com o inacabado em biblioterapia ficou bem patente assim que me embrenhei em leituras sobre as bases teóricas ou filosóficas do método: a palavra devir e os seus sinónimos, como transformação, e termos conexos como desenvolvimento, crescimento ou construção permanente foram os primeiros indícios de que teria de exorcizar parte da coach que fui um dia.
Quando me interessei por esta área, entre 2011 e 2012, foi evidente a falta de formação específica em Portugal. Uma certificação em coaching pareceu-me, então, uma boa alternativa já que exige aprender a formular as perguntas certas, a escutar activamente o outro, a identificar as suas necessidades e os seus objectivos, a não fazer juízos de valor e a orientá-lo nas mudanças que deseja concretizar, capacidades indispensáveis ao bom biblioterapeuta.
Mas se o sucesso do coaching se mede pelo atingir de objectivos, de preferência quantificáveis e mensuráveis, num espaço de tempo curto a médio, o estudo e a prática da biblioterapia, nomeadamente da biblioterapia de desenvolvimento, ensinaram-me que a eficácia do processo, mesmo quando medida pelo atingir do grande objectivo que é contribuir para a saúde e para o bem-estar do ser humano, não exige necessariamente um fim, até porque aqueles estados — saúde e bem-estar — não podem ser dados como adquiridos para todo o sempre. A biblioterapia tem, assim, um carácter contínuo e qualitativo, pode espoletar um processo que não acaba, posto em prática pela vida fora e sem preocupações de avaliação quantitativa.
Acresce que a biblioterapia de desenvolvimento é adaptável, flexível e também criativa. Flexível porque não obedece a protocolos rígidos, a regras que devem ser impreterivelmente seguidas (pelo menos por enquanto). É fundamental que os principais momentos do processo biblioterapêutico se verifiquem, com destaque para a identificação e a introspecção, mas com base nesse pressuposto a biblioterapia adapta-se a qualquer pessoa, em qualquer contexto, a qualquer fase da vida e espelha a forma particular de cada profissional pôr o método em prática, com as suas próprias fórmulas e procedimentos sempre ajustáveis e actualizáveis. Esta adaptabilidade justifica a sua veia criativa e exige criatividade aos próprios biblioterapeutas. Também aqui a biblioterapia é inacabada. E, dada a mestria que exige a quem a põe em prática, sinto que é na sua incompletude que reside o seu requinte.
Num mundo em que se deseja que tudo aconteça com rapidez, que tudo se resolva de forma definitiva e imediata para “partir-se para outra”, em que preferimos as respostas simples, fáceis, concisas e fechadas em vez das dúvidas, das incertezas, da complexidade e das pontas soltas, o ser humano vê-se atolado num paradoxo, porque é por natureza inacabado e intricado e a realidade à sua volta também o é. Talvez esteja aqui uma das (múltiplas) explicações para a epidemia de ansiedade que vivemos. A biblioterapia, por encarnar com requinte o inacabado, pode ajudar-nos a lidar com estas ambiguidades de forma mais equilibrada e serena.

