Autor(a):

carla carmona
Carla Carmona

A carta

Metro sobrelotado, pessoas resignadas e sós. O dia começara como qualquer outro.

Pelas onze horas o telemóvel toca, atendo e, após desligar, o meu primeiro pensamento é: Que chatice, tenho tanto trabalho.

Organizo a minha secretária e saio do escritório.

Em casa, preparo um pequeno saco de viagem. Só vou ficar dois dias, não posso desperdiçar mais.

Três horas depois, estaciono à porta da casa de família.

Ao entrar, sou cumprimentado pela Joana, a enfermeira que nos últimos anos cuidou do meu avô.

— Os meus sentimentos.

— Obrigado.

— Por favor vem comigo até à cozinha, preciso falar contigo antes de começarem a chegar pessoas.

A cozinha cheira a café com canela. Era assim que ele gostava.

— O teu avô pediu-me para te entregar esta carta.

Acenando-lhe com a cabeça, pego na carta e subo ao primeiro andar. Entro no meu quarto, largo o saco de viagem, pouso a carta na cómoda e vou para a casa mortuária.

Nas terras onde todos se conhecem, os velórios e funerais são eventos sociais a que todos podem assistir. Seriam muitas horas ali passadas. Amigos que se queriam despedir e conhecidos para prestar homenagem.

O tempo e os rostos fundiram-se num murmurar de conversas.

Com o cerrar da noite, fiquei só. Sentei-me num dos cadeirões, encostando a cabeça para ficar mais confortável.

Devo ter adormecido, pois, não me lembro de ouvir a porta ou passos. 

— Salvador.

As minhas pálpebras sobem e ela está à minha frente.

— Olá, Eunice — respondi.

Sinto a sua mão primeiro e depois, os lábios no meu rosto.

— Os meus sentimentos. Vais passar cá a noite?

— Sim. Porquê esse ar?

— Desculpa. Esqueci-me que, à tua maneira, amavas o teu avô. — As suas palavras ferem-me neste momento de pesar. Não foi intencional, talvez a expressão da sua tristeza.   

— À minha maneira?! Porque a minha é errada e a tua correta?

— Não vim aqui para discutir. Já pedi desculpa. Deixa-me ficar contigo, a noite é sempre difícil. — Faz como quiseres.

Ela ocupa a outra poltrona. Retomo a minha posição, bloqueando a sua presença.

O perfume de jasmim trouxe-me imagens, recordações de momentos bons, ocasiões felizes e de discussões. Tantas. Quando ou porque começavam não sei, mas eram o resultado das nossas conversas. Para as evitar, optava pelo silêncio. Por fim o apartamento e a cama ficaram vazios.

 

Acordo. O cadeirão ao lado está vazio. Ouço-o outra vez, lá está o galo, o despertador do campo.

Estou a tentar levantar-me, quando Eunice aparece com duas canecas.

— Trouxe café e tenho um pacote de bolachas na minha mala.

— Obrigado. — Aceito a caneca. — As bolachas, dispenso. — Contrapus rabugento.

— Já sabia que ias responder isso. Nunca tiveste tempo para te alimentares bem. Come, são nutritivas e achocolatadas. Aposto que ontem vieste directo e não comeste nada.

Aceitei a bolacha. É tão inato estarmos assim.

Vinte minutos idos, começam a chegar pessoas e a rotina do trabalho, para aqueles que lidam com a praticabilidade da morte, é habitual, para mim, é nevoeiro.

Igreja, cerimónia, caminho até ao cemitério, mais apertos de mão, condolências e eis-me de fronte a uma cova tapada. Oco. E a tristeza? Não devia sentir-me triste?

— Salvador, — sinto o calor da mão dela no braço — posso levar-te a casa. Vamos?

Segui-a até ao carro.

Dez minutos e estamos em casa, a do avô, aquela a que chamei casa antes da nossa.

— Obrigado pela boleia.

— Vais ficar uns dias?

— Não, tenho de voltar.

— Claro. O trabalho é o mais importante. — A sua observação é ríspida, magoada como no passado. Decide manter-se em silêncio.   

Não consegui responder, refutar, saí. Ao entrar em casa ouço o carro arrancar. Caminho até ao fundo do corredor enquanto tiro a gravata e o casaco. Tomo um banho e deito-me.

 

Malditos galos.

Viro-me e pego no telemóvel, 6h04. Caramba! Dormi umas 15 horas. Normalmente chegam-me cinco. Deve ser o efeito do campo.

Levanto-me, tomo banho e desço para a cozinha. Na caixa há pão, no frigorífico manteiga e presunto. Faço café e uma sandes. Como enquanto olho para o quintal da minha infância. Nessa altura, era enorme, o meu reino, brincadeiras com o meu herói.

Tenho comigo a carta, abro-a:

 

“Meu querido neto,

Quando leres estas palavras já não pertencerei a este mundo, mas estarei junto dos que amo e há muito partiram.

Queria apenas dizer-te que te amo e sempre amei.

Lamento profundamente que tenhas perdido os teus pais tão cedo. O teu pai, porque assim o quis, tua mãe que nos foi roubada pela maldita leucemia. Não deixes que estas perdas te endureçam, orgulho-me do homem que te tornaste, mas preocupo-me porque te sinto sempre tão sozinho.

Não desistas dos que amas por medo de os perderes. Assim, antes de os teres, de seres feliz, já os perdeste. Se há alguém em particular que amas, vai atrás dessa pessoa. De que vale estares sem o teu amor porque tens medo da dor de a perder? E a dor que sentiste nestes últimos tempos, vale a pena? E quando a vires feliz com outra pessoa? Para seres amado tens de amar, mesmo a dor da perda não suplanta essa alegria. Arrisca, vive, não te escondas, como tens feito até aqui.

Com amor, do teu avô.”

 

Não consigo respirar, é como se tudo o que esteve contido jorrasse livre, a dor da perda, a alegria das brincadeiras, das conversas, do carinho do meu avô. Peças de puzzle que se encaixam e mostram a minha vida. Custa–me respirar.

 

— Salvador, o que aconteceu, o que sentes? Queres que chame alguém, um médico?

— Água.

 

Entrega-me um copo com água e tenta perceber o que se passa. Estou pálido, ofegante, se não me conhecesse diria que estou desorientado. Conforme bebo, vou-me acalmando, e assim também ela — Sentes-te melhor? Queres que te leve ao hospital?

— Que exagero Eunice. Apenas me emocionei.

— Tu? Emocionar? 

— É assim que me vês, sem emoção? Foi por isso que me abandonaste?

— Acabaste de perder a pessoa mais importante da tua vida, não vamos discutir assuntos que estão encerrados.

— Tu que sempre discutiste, agora não o queres fazer? Fui um idiota por pensar que me amavas.

— Cala-te não digas mais nada, se continuares nem a amizade sobrevive.

— Qual amizade? Deixaste-me e nunca mais me tentaste contactar. Era assim tão mau viver comigo?

— Estás a sofrer, prefiro não ter esta discussão contigo. — Levanta-se e dirige-se para a porta — Não era mau viver contigo, mas no último ano e meio vivi sozinha.

Impelido pela raiva, corri, coloquei-me entre a porta e ela — Eu estive sempre lá, não sabia o que fazer, estávamos sempre a discutir.

— Disse-te várias vezes que não te podias focar no trabalho e esqueceres-te de viver comigo.

— Estava a tentar criar uma vida melhor para nós.

— Mentira, estavas a criar uma vida melhor para ti e a usar isso como desculpa para te desligares. 

— Tu sabes a minha história, o meu medo — passei os meus dedos pela sua face, pelo pescoço —, lixei tudo.

— Precisas de fazer o luto.

Antes de bater a porta, Eunice sussurra: — Podemos beber um café um dia destes.

Voltei à cozinha, peguei na carta, reli-a. As minhas pernas cederam, sentia-me esmagado, fiquei ali sentado a olhar o jardim.

Tens razão avô, o medo de perder quem amo não me pode impedir de amar.

Nota: por desejo da autora, este conto não segue o Acordo Ortográfico de 1990

A carta - - carla carmona
Partilhe:
AUTOR(A)
carla carmona
Carla Carmona

Carla Carmona é natural de Castelo Branco, residente no concelho de Odivelas, licenciada em Gestão pela UI e com um MBA em Gestão pelo ISCAL. Tem um percurso profissional nas áreas da contabilidade e financeira. Desde cedo que os livros fazem parte da sua vida e essa paixão levou a que em criança começasse a escrever contos e outras histórias. A vida foi-lhe apresentando vários desafios que a afastaram da escrita. A sua persistência, curiosidade e vontade de saber mais, impulsionou-a a frequentar formações em escrita promovidos pela escritora Analita Alves dos Santos.

A primeira experiência literária acontece com a participação numa coletânea de contos «Que o caminho não nos fuja», sucedendo-se participações na revista literária PALAVRAR.

Apaixonada pela vida, amigos, família e marido, encara a vida com um sorriso e uma gargalhada.

MAIS ARTIGOS