Quando a minha irmã mais velha, a Rosa, nos disse que já não era um corpo só, a cozinha ficou de pernas para o ar. Primeiro, os crescidos desocuparam os lugares, deixando a sobremesa na travessa da amargura. Depois, a tristeza sentou-se para comer. Mas tristeza não gosta de doce, então, o pobre gelado de chocolate, esquecido no centro da mesa, desfez-se em lágrimas castanhas. Restou apenas o sabor aborrecido do gelado a derreter, o cheiro a mesa abandonada à pressa. Sem entender porquê, decidi copiar os movimentos dos adultos, levantei-me da cadeira com os ombros encolhidos. Infeliz da vida, fui para a sala com a barriga vazia de doce, a dar pontapés nas pantufas.
Sentada no sofá, à espera de alguma brincadeira, estava a Maria-de-Pano, a boneca feita de tecido fofinho, a mais linda de todas as bonecas de pano que vivia no meu armário. Deu-ma a Rosa no Natal passado. As minhas amigas riram-se. É brinquedo de criança! Pois, conto nove anos nos dedos, por acaso, ainda sou uma criança do tipo criança, gosto de bonecas de pano, principalmente, das que possuem um sorriso pintado na cara.
A Maria-de-Pano sorri com a boca fechada. Não fala, eu falo por ela, mas vê e ouve tudo o que se passa no universo da casa. Naquela noite, viu e ouviu os sapatos dos adultos a riscarem o chão de madeira, de um lado para o outro, como se fossem patins de gelo. É verdade, os nervos andavam à mostra, a tremelicar como se estivessem com frio, notava-se de longe. A minha mãe apertava as mãos contra o peito, o meu pai levava as mãos à cabeça, a minha avó repetia palavras minúsculas, enquanto olhava para o nada e segurava um fio com bolas pequenas e brilhantes, o fio que costuma levar para a igreja aos domingos. Tanta coisa por causa de umas palavras ditas pela Rosa. Que exagero.
As bolinhas coloridas do fio da avó são iguais às missangas do meu colar preferido. Perdi-o num dia qualquer, num lugar não sei onde. Adorava-o, mas não gosto do fio da avó. Cheira a febre, a dor de garganta, a falta de sossego, a coisa complicada, dessas que os adultos preferem não explicar, mesmo quando insisto em perguntar:
— A Rosa vai ter um bebé?
Apenas o silêncio e vento, a entrar pelas frestas das janelas, tentaram sussurrar-me qualquer coisa. Não consegui decifrar. Então, comecei a falar para a minha própria cabeça. Vejamos. A minha irmã saiu de casa aos dezoito anos completos, pois preferiu morar sem companhia. Agora, aos vinte e dois incompletos, diz que deixou de ser um corpo só. Se ela assim o diz, é porque existe “outro alguém” a viver no corpo da Rosa. Ora, esse “outro alguém” deve ser um bebé, pois os bebés crescem dentro das barrigas das mães e começam a viver com elas. Quero dizer, dois corações passam a morar no mesmo corpo. Este corpo, agora acompanhado, deixa de ser um corpo só. Simples assim. Estás a compreender?
Como sei disto? O livro explicou-me. A mãe deu-mo. Certas perguntas complicadas andavam às voltas da mãe, a chatear-lhe a cabeça. Eu queria saber de onde vim, como nasci, por onde sai o ovo da galinha. O livro respondeu-me. Pensando bem, aquilo da Rosa não podia ser um bebé. O avô costumava dizer que a tristeza é a mãe do choro. O bebé, sendo o filho da alegria, não pode ser a mãe das choradeiras. Ou pode?
A pensar nas perguntas sem respostas, levei a boneca para a cama mais cedo do que era costume. Em seguida, deitei a minha cabeça em cima da almofada. Enquanto o sono não me segurava pelos pés, voei até às nuvens, deixei-me estar no meio delas, a matutar. Neste vai e não volta, o pensamento quase adormeceu por lá. Então, o medo pequenino aproximou-se: a Rosa está doente?
Tapei os ouvidos com a almofada e desafiei-o, comecei a pensar nos unicórnios, no jogo do “macaquinho do chinês”, nas “apanhadas”, empurrei o pensamento para adiante, para que corresse, pois “se o pensamento permanecer parado, o medo cresce”, diz a mãe quando o vê aproximar-se de mim. Cheguei a ficar com medo de que o medo tomasse conta do quarto inteiro. Mas, felizmente, ele desapareceu no mesmo instante em que o pensamento começou a esticar as asas, já ia longe quando compreendi tudo. Ou quase tudo. Havia uma-qualquer-outra-coisa a ocupar espaço, a teimar em crescer dentro da barriga da Rosa. Mas o que?
—Não vai haver casamento? O corpo aos pecados. Isso é a semente do pecado!
—Não diga isso, mãe.
Foi o que eu ouvi, certo dia, sem querer. Estava a passear pelo corredor, à procura do que fazer. De repente, a porta do quarto da Rosa abriu-se. Primeiro, saiu a voz da mãe, sozinha, separada do corpo, a deixar fugir algumas palavras. Depois, veio a da minha irmã, a cortar o que lhe saía da boca. Por fim, as duas vozes tentaram aprisionar letra por letra, mas já era tarde. Leves, soltas, as palavras entraram direitinhas na minha cabeça.
Ai, as malandras causavam comichão nos ouvidos. Semente, eu sabia o que era, por isso mesmo, fazia-me confusão as lágrimas do pai. Um crescido a perder-se no meio da choradeira só porque a filha achou por bem plantar uma semente do pecado dentro dela própria. Plantar vidas não é fazer o bem? Mas, e se não foi a Rosa a plantá-la? Então quem foi? De que forma iria sair? Cortar-lhe-iam a barriga para tirá-la de lá?
Uma coisa era certa, eu não fazia a mínima ideia do que se tratava. Também não conseguia libertar o pensamento dele, do tal do pecado. Alguém um dia o viu? Tem cara, olhos, nariz, boca de gente? Por vezes, diz o que não deve? É pena. Podia ser uma bebé, digo, uma menina. Dava-me jeito uma sobrinha. Olha, que engraçado, ser tia do pecado. Ser tia é sempre bom, não é? Deve ser.
Dia após dia, fui tentando encaixar as peças do puzzle abandonadas pelos cantos da casa. Estava difícil resolver o mistério, a Maria-de-Pano às vezes ajudava, mas eu precisava de algo como… a minha lupa de investigadora!
Deu-me imenso jeito, comecei a observar a barriga ao pormenor. Crescia demasiado depressa, tal e qual acontecera com a Rosa. Ainda ontem me pegava ao colo e brincava às escondidas, agora, ando desacompanhada, à vista de todos, a procurar pistas não sei do quê.
Mas o “pecado” dobrava de tamanho a cada dia, como o bolo da avó dentro do forno. Não satisfeito, fazia a Rosa devorar tudo o que via pela frente. Pior, a comida apanhava o caminho inverso com igual velocidade, mal dava tempo de a coitada correr para a casa de banho. Uma cena assustadora. É melhor saltar esta parte e ir direta à minha fantástica descoberta.
Um belo dia, a Rosa disse-me que as plantas estavam com sede. Ela adorava cuidar do quintal, cheirar as rosas do jardim. Mas a barriga, enorme, tão cheia de cor, redonda como o sol nos dias de verão, já não lhe deixava fazer certas coisas. Fiz por ela. Dei água às flores. O impressionante veio a seguir, palavras começaram a brotar na minha cabeça. Palavras iam nascendo, uma atrás da outra. Juntei-as, plantas, rosas, sementes. Estava tudo dito. De tanto cheirar as flores, a Rosa respirou, sem querer, uma semente, dessas que o vento carrega pelo ar. Quero dizer, a Rosa guardava dentro da barriga uma semente de flor. Desatei a correr, não via a hora de partilhar a minha descoberta.
Caí no vazio. Ninguém me emprestou um único ouvido. Repetiam a mesma cantiga. “o pecado do corpo”, “o corpo aos pecados”. Definitivamente, não conseguia compreender. Será que todo o crescido é assim, troca palavras, esquece-se de ser quem é? Ser adulto deve ser uma chatice. É o que eu acho. A certeza não tenho, nunca fui adulta.
Também não tinha certeza sobre aquilo que crescia na barriga da Rosa. As perguntas permaneceram sem respostas até à noite do acontecimento. De súbito, fui acordada pela correria. Esfreguei os olhos, calcei as pantufas, segui pelo corredor a tocar na escuridão, a contar os passos no chão invisível. Finalmente, alcancei o quarto da Rosa.
A cama parecia uma ilha, cercada de água por todos os lados. Ouvi vozes como se estivessem a fugir do interior da casa. Corri e abri a porta da rua. A minha irmã estava dentro do carro, em companhia do pai e da mãe. A avó abraçou-me assim que me viu, chorava e sorria ao mesmo tempo. Pelos vistos, a alegria também é mãe do choro. Soube disto naquele instante.
A vontade de querer saber de todas as outras coisas deu-me uma comichão valente, quis coçar-me dos pés à cabeça, tentei perguntar à avó sobre aquilo que me deixava o corpo impaciente. Na última hora, escondi a curiosidade, sei bem o que aconteceu ao Cusco, o gato de companhia do meu primo, o Tó Zé. A curiosidade tirou-lhe as sete vidas, disseram. Pelo sim, pelo não, afastei-a do pensamento, afinal, saber do acontecido era questão de tempo, mais cedo ou mais tarde.
Soube mais tarde. No dia a seguir. A avó levou-me ao hospital para ver a Rosa. A Maria-de-Pano foi comigo. Tentei arranjar-lhe as tranças umas quantas vezes. Não sabia o que fazer com as mãos.
Por encanto, a porta do quarto abriu-se.
— Mas…é uma bebé!
— E deveria ser o quê?
— A-Flor-de-Rosa.
Expliquei. Choraram, depois riram-se. Fiquei sem perceber se eles compreenderam ou não, se entenderam metade da história. Percebi que deixaram de falar no tal do “pecado”, ainda bem.
Via-se mal, a bebé, de tão tapada que estava. Os bebés precisam de estar protegidos do frio, são frágeis como as plantas de estufa, dizem. Aproximei-me. Cheirava a flor acabada de nascer, a perfume de jardim de primavera. Tinha as bochechas pintadas de um rosa tão cor-de-rosa como as pétalas das flores que a minha irmã tanto adora. Os bebés são todos lindos, não é verdade? É. Porém, as flores não são todas iguais. A bebé, a minha sobrinha, é diferente, é especial. Para mim, é, e sempre será, a-Flor-de-Rosa.