Autor(a):

Filipa Vicente
Per ficta resistire

A manta da avó Alice

Eu adorava os domingos! Chegada a hora depois do jantar, nós levantávamos a mesa, a avó Alice arrumava a cozinha e repousávamos na sala, ao lado da lareira aconchegante. A minha avó num cadeirão velho, verde, a fazer lembrar o veludo, nós, eu e a mana, no grande tapete do chão, em frente a ela. Todos os domingos a mesma coisa: pelo menos assim eu esperava que fosse, porque aquele momento era o mais valioso da semana!

A minha avó tinha cabelos brancos apanhados num carrapito no cimo da cabeça. Dócil nos gestos, na voz e nas palavras, um pouco baixa e roliça, usava sempre umas pantufas da cor do tapete da sala: púrpura.  Era sábia! Sabia muitas histórias. Algumas dizia serem reais, de outros tempos. Outras vinham mesmo da copiosa imaginação que tinha.

Nós já estávamos sentadas ao calor da grande lareira, ateada pelo meu avô. Ele despedia-se. Dizia que tinha sono. Umas vezes, saía da sala e ia para o quarto dormir. Outras, sentava-se no cadeirão e acabava por dormitar ali mesmo. De cabeça pendida para trás, roncava baixinho. A minha avó vinha depois. Ela era sempre a última. Primeiro a cozinha, depois a descontração. Arrastava as pantufas pelo corredor e nós arregalávamos os olhos. Era a hora. Ela estava a vir! Entrava na sala a passo de caracol, meio curvada, e, com algum esforço, sentava-se no cadeirão velho, verde e de veludo. Esticava o braço até ao chão, onde tinha uma cesta. Da cesta saía uma manta. Tricotava. E sempre que fazia a manta, era hora da história. Eu não queria que aquela manta ficasse acabada, nunca!

As agulhas a trabalhar a manta colorida e a minha avó começava. “Não me recordo se já vos contei esta, mas estou convencida de que não. Eu devia ter cinco anos, para aí, estava ao pé do tanque com a minha mãe, que lavava a roupa, lá na aldeia de Pegões, onde morávamos. Eu olhava atentamente porque queria muito aprender como se fazia. Queria ser igual à minha mãe. Nisto, a minha mãe disse que ia a campos num minuto e eu fiquei com as outras senhoras, que também lavavam no tanque. Peguei no sabão azul e branco…A propósito, sabem o que é este sabão? Já ouviram falar?” (Abanámos a cabeça em jeito negativo.) “É um sabão muito bom. É azul e branco e servia para lavar a roupa, naquele tempo. A minha mãe também tomava banho com ele, tal como eu e os meus irmãos. Bem, mas dizia eu, peguei no sabão para ensaboar uma saia que a minha mãe deixara em cima do tanque. Mas quando lhe peguei, o raio do sabão estava tão escorregadio que me fugiu da mão e foi parar ao fundo do tanque. Fiquei preocupada porque senti que tinha feito asneira. Debrucei-me para ver se o via no fundo das águas, mas acho que me debrucei demais, porque caí no tanque. Este não era fundo…” As suas agulhas trabalhavam agora com mais rapidez. Queriam acompanhar a história que estava a ficar empolgante!

A Beatriz e eu, muito atentas. O fogo a crepitar na lareira. O roncar do meu avô. E a história continuou: “O tanque não era fundo, mas eu não sabia nadar. Fiquei muito aflita, a chafurdar e a esbracejar no meio da água. As senhoras vieram em meu auxílio e saí puxada por uma delas, encharcada dos pés à cabeça. Foi um valente susto! Quando a minha mãe voltou, viu-me naquela figura. Contei-lhe a medo o sucedido. Ela não me castigou, mas ralhou comigo severamente. A minha mãe tinha ficado tão assustada quanto eu. Nesse dia, pedi-lhe desculpa e jurei que nunca mais faria algo semelhante!”

A manta repousava agora no colo da avó. As agulhas descansavam sobre a lã felpuda. Perguntei: “Avó, ainda falta muito para acabar a manta?” Aquela manta devia ser eterna, inacabada, porque eu não queria que as histórias que a avó contava terminassem, nunca. A manta tinha um tamanho considerável, cerca de 1 metro, mas a avó respondeu, perante a minha ansiedade: “Falta muito, muito, minha querida. É uma manta grande para colocar em cima da cama da avó e do avô.”

A semana de escola passou devagar. A professora chamava pelo meu nome. “Sara!”. Estava na lua. Não respondia. Só pensava na manta da avó Alice. Colorida, às riscas. Agora ela usava a lã amarela. Já tinha usado a laranja, a verde e a vermelha. Aquela manta era mágica. Era a manta contadora de histórias.

Domingo amanheceu.  A mãe tinha ido às compras. Nós ficámos com o pai, que se ocupou de mudar uma lâmpada e consertar a perna da mesa da cozinha. Os pais iriam passar o dia juntos, para namorar, como faziam quase todos os domingos. Dali a meia hora, a mãe chegaria a casa e levar-nos-ia para a casa da avó Alice.

Foi um dia cheio. Brincámos muito com a prima Joana, um ano mais velha do que eu. Mas confesso, não via a hora da chegada da noite. Dessa vez, o avô não acendeu a lareira. Estávamos no início da primavera. A manta ia longa, muito longa, demasiado longa. As histórias tinham sido muitas. Do inverno à primavera, ouvimos “Os sete cabritinhos”, “A branca de neve e os sete anões”, “Os três porquinhos”, “A gata borralheira”, “A menina das tranças ruivas”, “O homem das neves e o tesouro escondido”, “A armadilha do gangue da Fuzeta”, “As sete saias de Rosa Rosada”, “O violino estragado”, “O gato das botas”, “A viagem de Bernabéu”, “A aranha metediça”, “A gaiola do pavão”, e tantas mais…De cada vez que terminava uma história, lá vinha a mesma pergunta: “Ainda falta muito para acabar a manta?” Estava quase certa de que a manta da avó estaria quase completa. Ainda por cima, a sua voz ultimamente estava mais rouca e sumida.

Mas a avó Alice não era de desistir e, além disso, era sábia. Tinha tantas histórias na cabeça quantas há numa biblioteca. Sentámo-nos no tapete púrpura da sala. A cozinha estava arrumada e a avó sentada na poltrona verde e velha. Tossiu um pouco, tirou da cesta a manta e as agulhas e começou: “Era uma vez um coelho, aliás, três, três coelhos. Andavam no quintal a comer cenouras. O Pimpão, que era o mais novo, rebolou nas ervas com o seu pelo branco e felpudo. Só queria brincadeira. A mãe tinha avisado que deviam comer as cenouras antes do sol se pôr, que era quando a horta não tinha ninguém. A dona da horta, a essa hora, ia à missa. Todos os dias ao final da tarde ia à missa. Mas o Pimpão já tinha comido uma cenoura e a relva estava tão fresca e apetecível, com a rega do final de tarde, que ele só queria brincar. O Tristão, o coelho mais velho, nem lhe ligava muito. Olha – pensava ele – se ele tiver fome durante a noite, é lá com ele. Não foi por falta de aviso! O Zangão, o irmão do meio, refilava com o Pimpão de vez em quando, até porque o mais novo metia-se com ele, a pedir festa, e ele estava mais interessado em fazer o que a mãe mandava.” De repente, a avó Alice parou para pensar. Aquela devia ser mais uma das suas histórias inventadas à última da hora. O que viria a seguir? A Beatriz e eu, sentadas no tapete da sala, com os olhos pregados na avó e na manta de lã, que agora se tornava azul-petróleo. O avô pigarreou. Acordou sobressaltado de um sono agitado na poltrona ao lado da avó. Virou a cabeça para o outro lado, ajeitou o corpo no assento e voltou a adormecer. A avó estava calada. Calada por muito mais tempo do que era costume, quando inventava uma história e tinha de pensar no que vinha a seguir. As agulhas nas suas mãos estavam a ficar frias. O azul da tira, que agora queria aparecer na manta, brilhava com a luz artificial do candeeiro de pé que lhe incidia diretamente. “Avó”, perguntei, “ainda falta muito para acabar a manta?”. A avó Alice estremeceu ligeiramente no cadeirão e pareceu acordar subitamente de algum pensamento que a levou para longe. Não me respondeu e recomeçou: “Bom, acabados de jantar na horta, os três coelhinhos foram para casa. Em casa estava a mãe a preparar as camas para eles dormirem.  Sentia-se um cheiro bom a alfazema. A mãe tinha andado a colhê-la para a colocar em saquinhos pequenos, a fim de afastar as traças dos panos de cozinha e dos atoalhados. Cada um na sua cama, o Pimpão, o Zangão e o Tristão, foram dormir. O dia seguinte seria um dia cheio; seria a festa de aniversário dos três irmãos!” A manta crescia agora devagarinho. As agulhas trabalhavam lentamente, um ponto atrás do outro, quase sem fazerem o típico tic-tic de quando andavam mais depressa. A avó Alice fez uma pausa e bocejou. Estava com sono. “Minhas queridas, acho que começa a ficar tarde. Amanhã é dia de escola e estou cansada. Continuo a contar a história dos três coelhinhos no próximo domingo, pode ser?” Fiquei desapontada. Não era a primeira vez que a avó não acabava uma história no mesmo dia. Ultimamente, acontecia cada vez com mais frequência. Não conseguia entender…,mas vendo os olhos dela tão mortiços e o cansaço evidente no rosto, anui. “Sim, avó, fica para o próximo domingo…”

Passaram-se mais quatro primaveras. A avó nunca chegou a terminar a última história. Só me recordo dela deitada numa cama, do pestanejar dos olhos azuis baços, de lhe dar a mão, cada vez que entrava no quarto para a ver, e de ela me apertar a mão com força. Já não falava nem se mexia, mas ainda me reconhecia pelo aperto da mão dela na minha. Hoje, estou sentada  nesta cama em cima da manta de histórias da avó Alice. E que manta tão linda e aconchegante! Multicolorida, faz-me lembrar como a avó era divertida, bem-disposta, sempre pronta para nos contar uma piada ou história. Olho fixamente para o baú que está aberto num canto do meu quarto. Deixo-me levar pelas memórias. Dentro dele, vários novelos de lã gordos e fofos e umas agulhas de tricô. Viro o olhar para as minhas mãos. Seguro o bilhete que estava no baú quando o abri pela primeira vez. “A manta nunca está acabada, minha querida Sara! Deixo-te a lã e as agulhas para poderes continuar a contar as histórias da avó Alice”. Solta-se-me uma lágrima dos olhos, que pousa no bilhete e o molha ligeiramente. Deixa um borrão nas últimas letras do nome da avó. E, inesperadamente, desenha-se a forma daquilo que me parece ser um coração de água salgada. Ela manda-me amor, e eu continuarei a amar as suas histórias!

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AUTOR(A)
Filipa Vicente

Filipa Teixeira Vicente, nascida em 1977 na cidade do Porto, tem como maior motivação a própria vida. Para escrever, inspira-se num girassol caído, na cauda de um pavão vaidoso, numa palavra de uma música, nas conversas das vizinhas e noutros episódios que fazem parte do quotidiano.

Adora dançar, caminhar, nadar no mar e conviver. Desde pequenina com uma sensibilidade fora do comum, sente para além do visível, do palpável. “Tu és diferente”, a frase que muito ouviu ainda criança. É somente na vida adulta que compreende a expressão. Toma consciência da amplitude dos seus gestos, do seu olhar para além do horizonte, de como consegue perceber as energias ao seu redor de uma forma extraordinária. Faz uso desta característica para compreender o mundo que a rodeia, percepcionando cada raiar da manhã como se fosse o primeiro. É com este olhar que passa para fora tudo o que lhe vai dentro, tantas vezes através da escrita e tantas outras através de outras expressões artísticas

Tem, como obras publicadas, três livros infantis, um juvenil e uma biografia.

Frequentou a formação “Escrita em ação” com a mentoria de Analita Alves dos Santos.

A VIDA é a sua maior fonte de inspiração.

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