Autor(a):

Manuela Vieira

A outra versão

«Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.»

Fernando Pessoa

Respirava o verde oferecido pelas folhas que só existem nas terras da Macaronésia. A levada tinha os seus declives. O olhar atento dos caminheiros era evidente. Cuidado aqui, cuidado ali.

No grupo, Rosário caminhava esquecida de tudo e de todos. Sentia cada passo que dava como quem quer conhecer os próprios pés. O chão era uma cama perfeita, sem lençóis, mas cheia de almofadas, umas mais húmidas que outras. O cheiro do musgo e das pinhas penetrava-a, convidando a mudar o perfume que usava. O da natureza era perfeito.

Inicialmente, os pensamentos visitavam-na, constantes. O problema da filha, o incómodo de alguns arrependimentos, daquilo que deveria ter feito e não fez, o culpar-se, por acreditar que jamais poderia falhar. Como isso a afligia. Pouco a pouco, os sons das levadas substituíram os ruídos instalados na sua mente. As folhas mortas, quando pisadas, faziam música. Uma melodia hipnótica convidava-a a sorrir. Um raio de sol extasiou o grupo, trespassava a floresta que se mantinha hirta, na encosta abrupta do caminho.

Cada uma das pessoas já se encontrava num patamar de presença maior. O cansaço despia a alma, convidando-as a estarem verdadeiramente na caminhada. Rosário relaxou e mergulhou no momento.

Ao chegarem a uma clareira, sentaram-se para beber água e partilhar um pequeno lanche: figos secos, nêsperas e não faltaram as cerejas da época. Conversaram. Riram. Olharam-se nos olhos. Disseram os seus nomes. Sentiram ânimo pelo que viam nuns e noutros e uma alegria genuína, por estarem juntos.

Nisto, o alarme, que Rosário instalara na mente, tocou. Abriu a mochila e procurou o telemóvel. Oh! Meu Deus! Não trouxe! Não acredito. E agora? Olhou ao seu redor e perguntou se alguém tinha um. Ninguém levara. Como? Estão todos a dormir? Onde é que o deixei? Oh! E agora? Será que a Joana me ligou? Ontem senti-a tão perturbada. Devia ter enfiado o raio do aparelho na bolsa! Como controlar daqui? Não dá para voltar sozinha. Isto é perigoso. A que horas acaba o passeio? — gritou, em desespero.

Ainda faltavam duas horas e meia. Que massacre, pensou. Tentou manter-se calma, mas não conseguia. A vida fugia-lhe pelos dedos, sem um telemóvel para teclar. Como controlar o incontrolável? Olhou para o relógio. Tinham passado apenas uns minutos.  A boca ficou seca, o peito fechou-se, a cabeça tombou.

Alguém conversou com ela, a lembrar-lhe que, afinal, aquele passeio iria oferecer forças para aguentar os problemas que carregava. Enfim, depois desta atenção, acalmou-se e seguiu, num silêncio mórbido. Ela e os seus pensamentos.

Entraram no autocarro para a cidade. Daí, Rosário correu para a sua viatura, acelerando o que podia para chegar a casa.

Joana não estava. O que teria acontecido? Gritava à espera de um milagre.

Agarrou o telemóvel e viu que a filha lhe ligara. Oh! Meu Deus! Espero que não lhe tenha acontecido nada.

Logo de seguida, o telefone tocou. Era o ex-marido a dizer que se encontrava no hospital. Joana tentara o suicídio, na casa de uma amiga. Socorrida a tempo, foi levada para as urgências. No momento, estava fora de perigo, mas muito fragilizada. 

Rosário, numa correria, deslocou-se ao hospital, assoberbada pela culpa. Se tivesse levado o telemóvel, nada daquilo teria acontecido, pensou. A filha, que rondava os trinta anos, tornara-se toxicodependente depois de um desgosto amoroso. Desde então que Rosário vivia para ela. Fora o psicólogo quem aconselhara a fazer passeios longos, para seu próprio benefício.

À noite, Rosário sonhou. Sonhou com uma nova versão dos factos.

No sonho estava a caminhar na levada. Sabia que ia com um grupo, mas não os via. Tinha o telemóvel na mão, sempre a tentar fazer uma chamada. Sem êxito. Suspirava, enquanto os seguia mecanicamente. A cada cinquenta metros uma tentativa de chamada.

Via a sua face ruborizada de raiva, de dor, de preocupação, os olhos ocupados com o teclado. Já lhe doíam as costas e os pés. Uma vontade enorme de chorar. Como é que a poderei controlar daqui? Nunca deveria ter iniciado este passeio. Nunca! — ouvia-se dizer.

Depois de dar algumas topadas nos pequenos relevos que o chão oferecia, Rosário caiu, estatelando-se ao comprido. Agarrada pelos companheiros, seguiu. Ao chegarem à clareira da floresta, o telemóvel tocou. Era a filha. Alô? Alô? Filha! Fala! Estás a ouvir? E nada.

Continuaram a caminhada. Tão cega estava que, próximo do término, não viu o desvio, tropeçando. Torceu o pé direito, de forma muito dolorosa. Levada às cavalitas por um dos caminhantes até ao final do percurso, seguiu de ambulância para o hospital.

À entrada, encontrou o ex-marido e a amiga da filha que lhe entregou um papel. Leu:

«Mãe, liguei apenas para ouvir a tua voz pela última vez. Perdoa-me.»

Rosário acordou pensativa: O que tenho feito, até agora? Como continuar? Controlar o incontrolável? Hum! Não sei, prefiro não! 

A outra versao - Manuela Vieira
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AUTOR(A)
Manuela Vieira

Manuela Vieira é mãe e avó. Com raízes africanas, desde cedo se interessou pelo estudo da espiritualidade, na busca de uma visão mais ampla do Homem, entendendo-o para além daquilo que ele é numa existência. Colabora com a Federação Espírita Portuguesa, com quem publicou uma série de coleções de livros infantojuvenis que integram o programa para a educação espírita em Portugal.

Licenciada em Educação Física e Desporto pela Universidade Central da Cultura Física de Moscovo; Pós-graduação em Parentalidade e Educação Positivas pela escola da Parentalidade e Educação Positivas de Magda Gomes Dias.

Trabalha na área da educação, onde abraça com destemor um evento anual, que reúne as diferentes gerações, num conceito diferenciado daquilo que é o desporto escolar em Portugal.

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