Autor(a):

alexandra ferreira
Alexandra Ferreira
Per ficta resistire

A Última Demão de Tinta

Maria parou diante da casa. A chave pesava na mão como uma sentença antiga. O portão de ferro, coberto de heras, deixava entrever uma fachada cansada, mas de pé. Não era o frio que lhe tremia os dedos, era a herança silenciosa que agora se erguia à sua frente. Respirou fundo. Entrou.

No átrio, o ar tinha o cheiro estagnado de coisa adormecida. As cortinas de renda amarelecida ainda pendiam das janelas. Lençóis sobre os móveis sugeriam fantasmas à espera de libertação. Uma cadeira oscilava levemente, como se alguém tivesse acabado de se levantar.

A chave, de cabeça em flor-de-lis, abrira não só a porta, mas um tempo soterrado. Percorreu a sala e os corredores com passos contidos. Nas paredes, desenhos a carvão — vultos de mulheres, flores, luas — contavam segredos sem língua.

Na cozinha, encontrou o bilhete: «A casa é tua agora. Não tenhas pressa. Há paredes que não se pintam.» Era a caligrafia firme da tia Leonor, aquela mulher de saias longas e pulseiras tilintantes, de mãos que curavam e olhos que viam fundo. A mulher que chamavam de santa, de bruxa, de exilada. Para Maria, fora porto e reflexo.

Subiu as escadas. O soalho rangia como quem protesta contra o esquecimento. No quarto principal, junto ao espelho oval, havia outro bilhete, colado no verso com fita seca:
 «Se vires quem és, pinta.»

Hesitou. Estava ali para preservar ou para transformar? A casa era santuário ou semente?

Desceu. Sentou-se no chão da sala. Retirou do bolso a pedra que a tia lhe dera em criança: «Para te lembrares de quem és, mesmo quando todos esquecerem.» Durante anos carregara-a sem entender. Agora compreendia, Leonor não a preparara para guardar memórias, mas para reescrever linhagens.

Decidiu.

No dia seguinte, comprou tinta. Vermelha. Escolheu a parede do fundo da sala, a mais gasta, a mais ferida. Limpou-a com panos húmidos, raspou camadas de pó, soltou os pregos antigos. Depois, ergueu o rolo e encostou-o ao reboco cru.

A cor escorria densa, sangue desperto. Cada passada era um gesto. Cada camada, uma promessa. Quando terminou, recuou um passo. Sorriu. Naquela parede, far-se-iam encontros. Ali, mulheres falariam alto. Ali, ninguém mais se esconderia.

No vidro embaciado, escreveu com o dedo: «Ciclo Leonor – Oficinas para Mulheres.»

Abriu as janelas. O ar entrou com força, varrendo os lençóis. Na madeira da porta, pousou a pedra. Era a nova guardiã.

O vermelho na parede ardia como aurora.

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AUTOR(A)
alexandra ferreira
Alexandra Ferreira

Alexandra Ferreira, natural de Coimbra, reside em Leiria.

Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Franceses e Ingleses, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Além de se dedicar ao ensino, é também dirigente espiritual de um terreiro de Umbanda e presidente de uma associação de solidariedade social.

No âmbito da sua paixão pela escrita e pela comunicação, integra coletivos femininos literários do Mulherio das Letras, a comunidade de Nardele Gomes, a comunidade de WRITERS de Analita Alves dos Santos e o Clube de Leitura «Encontros Literários O Prazer da Escrita». Participou em várias coletâneas promovidas pela In-Finita e na antologia «Cantamos Todas Nós». É autora do livro Rumo ao Topo – É lá que nos vamos encontrar (2022).

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