Maria parou diante da casa. A chave pesava na mão como uma sentença antiga. O portão de ferro, coberto de heras, deixava entrever uma fachada cansada, mas de pé. Não era o frio que lhe tremia os dedos, era a herança silenciosa que agora se erguia à sua frente. Respirou fundo. Entrou.
No átrio, o ar tinha o cheiro estagnado de coisa adormecida. As cortinas de renda amarelecida ainda pendiam das janelas. Lençóis sobre os móveis sugeriam fantasmas à espera de libertação. Uma cadeira oscilava levemente, como se alguém tivesse acabado de se levantar.
A chave, de cabeça em flor-de-lis, abrira não só a porta, mas um tempo soterrado. Percorreu a sala e os corredores com passos contidos. Nas paredes, desenhos a carvão — vultos de mulheres, flores, luas — contavam segredos sem língua.
Na cozinha, encontrou o bilhete: «A casa é tua agora. Não tenhas pressa. Há paredes que não se pintam.» Era a caligrafia firme da tia Leonor, aquela mulher de saias longas e pulseiras tilintantes, de mãos que curavam e olhos que viam fundo. A mulher que chamavam de santa, de bruxa, de exilada. Para Maria, fora porto e reflexo.
Subiu as escadas. O soalho rangia como quem protesta contra o esquecimento. No quarto principal, junto ao espelho oval, havia outro bilhete, colado no verso com fita seca:
«Se vires quem és, pinta.»
Hesitou. Estava ali para preservar ou para transformar? A casa era santuário ou semente?
Desceu. Sentou-se no chão da sala. Retirou do bolso a pedra que a tia lhe dera em criança: «Para te lembrares de quem és, mesmo quando todos esquecerem.» Durante anos carregara-a sem entender. Agora compreendia, Leonor não a preparara para guardar memórias, mas para reescrever linhagens.
Decidiu.
No dia seguinte, comprou tinta. Vermelha. Escolheu a parede do fundo da sala, a mais gasta, a mais ferida. Limpou-a com panos húmidos, raspou camadas de pó, soltou os pregos antigos. Depois, ergueu o rolo e encostou-o ao reboco cru.
A cor escorria densa, sangue desperto. Cada passada era um gesto. Cada camada, uma promessa. Quando terminou, recuou um passo. Sorriu. Naquela parede, far-se-iam encontros. Ali, mulheres falariam alto. Ali, ninguém mais se esconderia.
No vidro embaciado, escreveu com o dedo: «Ciclo Leonor – Oficinas para Mulheres.»
Abriu as janelas. O ar entrou com força, varrendo os lençóis. Na madeira da porta, pousou a pedra. Era a nova guardiã.
O vermelho na parede ardia como aurora.