Primeiro foi no bar de Açnagarb, a enigmática serpente verduga a auxiliar-me na pesquisa jornalística, depois foi Anieska, há muito conhecida dos olhos, mas durante muito tempo impercetível ao meu coração. Agora, imagine-se, via o seu rosto nas volutas magras emanadas do cachimbo de arievilo. E, porque a loira Anieska contara que vinha das montanhas onde o Sol nascia para a restante Europa, lembrei-me de montes e vales, serranias e florestas.
A memória é baile concorrido, começa-se com certo par e termina-se abraçados a outro alguém. Isto porque, atrelada aos retratos destas duas mulheres, assomou-se à dança uma figura da minha infância, a Usaganha do Gerês, filha da Grande-Usa. Recuso apontar seus nomes, sabê-los é possuir aptidão de as invocar, ferramenta desnecessária nas mãos de ignorantes. Invocando genealogias, adianto que a Grande-Usa é filha de Calisto e Endovélico. Da progenitora guardou forma de urso e porte régio da Arcádia, enquanto do pai, deus portentoso da península na extrema do pôr do sol, herdou poderes de cura, de ligação à terra e de profecia. Durante séculos, a Usa vagou pelas serranias peninsulares, gigante como um carvalho e impercetível ao olho humano, até se consorciar brevemente com a deusa Atégina, a Fértil. Do enlace das duas, tal eram os poderes geradores da divindade, o ventre de Usa fermentou
Deparei-me com a pequena ursa, ou Usaganha, nas discorrências de infância, pelos sete anos. A minha casa era apontamento isolado nos vales acercados a Pitões das Júnias, aldeia longínqua do norte de Portugal. Naqueles bosques, qualquer criança pé-de-cabra podia expandir brincadeiras fortuitas, apesar das preocupações constantes dos pais. E não eram só humanos a inquietá-los. Ingénuo e despreocupado, partia com mochila às costas e a máquina fotográfica ofertada no Natal.
Nesse mundo, que aparentava pertencer-me, vislumbrei a Usaganha do Gerês, ursa criança, pelos verdes, mesclados de erva e flores, e três vezes o meu tamanho. Aproximei-me sem temor e deparei com tristeza, porque, explicou-me mais tarde, acabara de enterrar uma cria de lobo, abandonada pela progenitora. A loba fora dominada pelo Amentador de Xendive, galego sinistro que sujeitava com magia a mente das feras e as arregimentava para as hostes do mal. “Se a minha mãe o apanha, ele vai ver!”, exprimiu a usaganha com raiva. A mãe era a Grande-Usa, mas nem ela o alcançaria com facilidade, pois andava montado no Unicórnio Negro, arribando e partindo em velocidade.
E fizemo-nos amigos, porque a consegui ver naquele momento de abatimento, e porque ela, depois, se engraçou do meu ar tosco e amável, suponho. A partir daquele dia, até quando fui para o liceu, distante, os nossos laços foram inquebrantáveis. A ursinha verde o menino pé-de-cabra. Afinal, um jornalista não nasce profissional, foi petiz como todos os outros, mesmo sendo obrigado a usar grossas botas para disfarçar os cascos. A Usaganha foi a paixoneta de miúdo, a primeira de todas.
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