Blém-blém, blém-blém…
Blém-blém, blém-blém…
Não, blém não soa nada bem…
Dlim-dlão! Dlim-dlão!
Dlim-dlão! Dlim-dlão!
Agora sim, em bom português, é assim que os sinos tocam.
Dlim-dlão! Dlim-dlão!
Este sino tagarela vive na torre, que fica na praça, que dá para a rua, que pertence à cidade, que faz parte de um país, que ninguém sabe onde fica. Que e que, ufa, ufa!
As casas por ali erguidas guardam a torre, que fica na praça. E a torre, agradecida, mantém-se imponente, prometendo que não troca esta praceta por nenhuma outra. É circular, a praceta, não a torre, e debruada a flores coloridas, que disputam a atenção de quem passa; e de quem se senta, pois praceta que se preze deve ter, pelo menos, um par de bancos de jardim. Bancos de jardim, sim. E não pode ter só bancos? Pode, mas, se por ali aflora um jardim, os bancos não podem ser só bancos, têm de ser bancos de jardim — para que quem se senta neles perceba o cheiro a terra molhada, quando as nuvens choram nos primeiros dias de Outono, ou quando espirram antes de chegar a Primavera.
A torre, pequena, mas majestosa, leva muito a sério o seu papel, até porque o sino rezingão faz questão de lembrar os habitantes de não se atrasarem para os compromissos e reclama quando eles já vão atrasados. Dlim-dlão! Dlim-dlão!
O sino palrador toca só para dar as horas. Ah, então ninguém avisou que esta torre também tem um relógio? Tem, sim, caso contrário como poderia anunciar as horas? A torre tem um relógio, para além do sino. Não se sabe qual instalaram primeiro, o sino ou o relógio. É, aliás, assunto de discussão, dia sim, dia não. A torre já teve de intervir, mais de uma vez, nas zaragatas entre eles; não fosse ela, no seu papel conciliador, e decerto já teria havido ponteiros partidos, badalos afónicos e outras desgraças, certamente funestas para a torre; e para a praça, e para a rua, e para a cidade e para o país, que ninguém sabe onde fica.
Este enorme relógio branco, com ponteiros negros e números bem delineados, dá ordens ao sino; ele não tem outro remédio senão obedecer. E como é que funciona? Estará alguém lá em baixo a puxar a corda à sineta de hora a hora? Talvez… ou talvez funcione com um mecanismo muito elaborado e… bem, não importa. O importante é que o sino apregoa as horas. Mas só as horas certas. Não confessa as meias horas nem denuncia os quartos de hora. Não, isso já dá muito trabalho.
Esse também é assunto que não tem fim, ora se discute dia não, ora se discute dia sim.
Dlim-dlão! Uma. Dlim-dlão! Duas. Dlim-dlão! Três.
O problema é que a cidade só funciona na hora certa. O trabalho começa na hora certa, chega-se à escola na hora certa, as lojas abrem na hora certa, marcam-se encontros na hora certa. Mas então, e os minutos? Os quartos de hora? As meias horas?
Corajosos houve, que tentaram infiltrar-se nos quartos de hora. Pensaram que, saindo da escola ou do trabalho à hora certa, poderiam, por exemplo, ir passear e comer um gelado com os amigos, um quarto de hora mais tarde. O problema é que o sino não toca nos quartos de hora, e os habitantes da cidade não sabem às quantas andam. Tinham, portanto, de esperar até ouvir as badaladas da hora certa e, por essa hora, já os gelados tinham derretido.
Houve outros, também eles corajosos, e um pouco mais inspirados, que tentaram contar o tempo entre a hora certa, o quarto de hora e a meia hora. Decidiram sentar-se num banco e olhar fixamente para o relógio. Correcção, sentaram-se num banco de jardim. Há que dar atenção a estas particularidades, e um banco de jardim merece tanta atenção como qualquer outra particularidade.
Olharam, então, para o relógio e começaram a contar.
Qual foi o resultado? Três pontos a saber:
…?
Não, não são esses três pontos. São estes:
Ponto um — as contas não batiam certo, porque alguns contavam mais depressa que outros.
Ponto dois — a meio da contagem, alguns deixavam-se dormir.
Ponto três — outros nem sequer sabiam contar.
Deu-se, assim, por encerrada a experiência.
E fora da hora certa, os habitantes continuavam desnorteados.
A torre lembrou-se, então, de contactar outra torre sua conhecida que, tal como ela, era pequena, mas imponente. Vivia numa praça que era quadrada, que cortava uma avenida, que pertencia à cidade, que fazia parte de um país, que todos sabiam onde ficava. E que, pelos vistos, também abusava do «que».
Esta torre sugeriu que arranjassem mais relógios. Se tinham um na hora certa, porque não ter outro para os quartos de hora e outro para as meias horas?
A torre do país que ninguém sabe onde fica agradeceu e foi logo falar com os habitantes. De bom grado aceitaram a ideia e dirigiram-se à relojoaria da cidade. Estava fechada, pois ainda não era a hora certa. Assim que o relojoeiro abriu portas, expuseram a questão. O homem não se fez rogado e, em boa hora, construiu dois belos relógios brancos, um com ponteiros dourados, para as meias horas, e outro com ponteiros prateados, para os quartos de hora.
Num dia acertado, e à hora certa, a torre recebeu-os, orgulhosa.
O sino fora, desde o início, contra a ideia. Já era cansativo tocar uma vez por hora, quanto mais quatro. Mas, não querendo dar parte fraca, dedicou-se ao trabalho com afinco. Badalada após badalada, rezingava a hora certa, suspirava os quartos de hora, desembuchava as meias horas. Os habitantes andavam num corrupio. Não estavam habituados a ouvir o sino tocar de quinze em quinze minutos. Deixaram de chegar ao trabalho à hora certa; às vezes chegavam ao quarto de hora. Nos encontros ou reuniões, marcados para os quartos de hora, apareciam às meias horas. As lojas, que obedeciam a um horário rigoroso, abriam portas um quarto de hora antes do habitual. Até as flores no jardim da praça se esqueciam de florir à hora certa, deixando o despertar para meia hora depois.
Mas o mais grave foi o que aconteceu ao sino — de tanto badalar, ficou afónico.
Estranhando o silêncio, os habitantes dirigiram-se à praça. Iam aparecendo, uns ficavam em pé, outros sentavam-se nos bancos do jardim, todos com os olhos postos na torre. Chegada a noite, o sino continuava calado. Nada podendo fazer, foram todos dormir.
No dia seguinte, não soando as badaladas, alguns atrasaram-se para os seus compromissos e outros nem chegaram a acordar. O silêncio abraçou os dias que se seguiram. Foi um desnorteio ainda maior do que aquele que já conheciam.
Após merecido descanso, o sino recuperou a voz. Não seria, contudo, aconselhável voltar ao ritmo desenfreado que o tinha deixado doente. A torre, na sua sabedoria, sugeriu que ele começasse aos poucos; podia tocar apenas à hora certa, como nos velhos tempos. Pelo menos, até recuperar totalmente.
E assim foi.
Dlim-dlão! Uma. Dlim-dlão! Duas. Dlim-dlão! Três.
Aos poucos, os habitantes deixaram-se embalar, de novo, pelo toque da hora certa. E pouca falta sentiram dos quartos de hora e das meias horas.
Então, e os relógios dos ponteiros dourados e prateados? Abandonaram o país que ninguém sabe onde fica e procuraram outros lugares, onde pudessem fazer-se ouvir? Não; continuaram felizes na torre, a fazer companhia ao relógio dos ponteiros negros. E do seu poiso alto admiram o jardim, que está na praceta, que dá para a rua, que pertence à cidade, que faz parte de um país, que ninguém sabe onde fica.
E, segundo consta, tornaram-se fãs do «que».
Este texto não segue a grafia do novo AO