Confesso que jamais tinha feito tal coisa. Nunca tivera coragem. Até hoje. Precisava de algo diferente na minha vida, algo que apimentasse o pacato dia-a-dia. Era o que afirmava a mim própria para conseguir convencer-me. Sentia que tinha tanto para dar e queria muito mais. Desejava realizar inúmeras coisas que me passavam pela cabeça. Chegara àquela idade em que me apetecia aproveitar a vida em pleno. Todavia, o lado tímido, tão dominador, e as vincadas crenças de que desejava libertar-me, levavam-me sempre para outros caminhos. Retraíra-me, eu sei. Oh, se sei. Tenho consciência disso.
Conseguira, finalmente, dar um passo para substanciar a valentia. Nem as minhas amigas do coração sabiam do que iria fazer, ali, naquele final de dia. Guardara segredo. Contar-lhes-ia depois, para ver a reacção. Sei bem qual delas era capaz de me seguir os passos e fazer o mesmo. Aposto em como vou acabar por ser uma inspiração. Que as vou surpreender, ai isso vou! Já as imagino a quererem saber todos os pormenores. Todinhos! Mais tarde, decidirei o que contar e o que manter apenas para mim. Sabe bem ter pequenos e marotos segredos. Todos temos segredos.
À medida que avançava ao encontro do destino, admirava com nervosismo os pingos de chuva que pintalgavam de cor as luzes dominantes da noite. O vidro da janela do carro era a sua magnífica tela. Sentia-me ligeiramente insegura por ir àquela festa sem conhecer ninguém. Contudo, algo me puxava para o fazer. “Uma loucura”, pensei, “Preciso. Preciso de uma loucura”. Era a eterna sensação de caminhar por um constante caminho inacabado que nunca me levaria para fora da minha zona de conforto. Ao mesmo tempo, nascia em mim a vontade de rebentar com essa muralha invisível.
Ajeitei o longo vestido. Adorava-o. Olhei para a mão que tremia, nervosa, e respirei fundo. “Calma. Vai tudo correr bem”. Apercebi-me de que estava a poucos metros da entrada. O coração disparou e senti vontade de regressar a para casa e terminar com tudo! “Estou mesmo doida!”, repetia, tentando convencer a coragem a não avançar.
De nada valeu. Estava determinada.
O carro parou e abriram-me a porta. Olhei para cima e admirei fascinada a fachada daquele palacete. Agora, não tinha hipótese. Era avançar.
Notei o dançar da saia do vestido e o bailar dos brilhos que reflectia. Sabia que tinha feito a escolha perfeita. Sentia-me poderosa e encantadora. Porém, restava um recanto amedrontado, governado pela timidez parva e limitadora. Levantei a cabeça, endireitei as costas e avancei, ignorando-me propositadamente. Aquela minha outra pessoa precisava de se calar. Durante as horas seguintes, iria assumir um outro lado, mais sedutor e oculto. Possuía uma face impenetrável que desejava ser conquistada.
À medida que caminhava para a entrada, o coração batia cada vez mais rápido.
Ajeitei a máscara veneziana de tons prateados e azuis, que disfarçava os olhos, e contemplei melhor o vestido que trajava: azul-turquesa, comprido, rodado e perfeitamente justo, num maravilhoso corpete que salientava a minha pele branca e os recantos misteriosos do peito. Reforçara o batom vermelho-escuro, para realçar os meus lábios, sempre discretos. Naquele dia, até eles estavam resplandecentes. Reconhecia isso.
A temática do baile era clássica e eu sentia-me uma donzela da corte. Na verdade, presumia-me uma rainha. Os olhares centravam-se em mim, fazendo-me acreditar. Não passava despercebida. Gostava da sensação, mas, de igual modo, notava a insegurança num papel com que nunca soubera lidar. Não imaginava que estariam presentes tantas e tantas pessoas. “Quantas não estarão a passar pelos mesmos receios, pelas mesmas inseguranças, pela mesma inquietude?”, questionei, observando tranquilamente do alto da escadaria. Constatei que a maioria era formada por casais e eu, ali, sozinha. “Que disparate fizeste? Devias era estar em casa. Não tens idade para estas iniciativas. Não tens juízo!”. A ansiedade disparou, mas consegui sossegá-la ao admirar em pormenor o local. A entrada do palacete era deslumbrante. Inúmeras vezes passara à porta e nunca imaginara como seria o interior. Verdadeiramente impressionante e mágico. Não contive um sorriso e isso acalmou-me.
Respirei fundo, enchi-me de coragem, levantei um pouco a saia e iniciei a descida, devagar, em direcção ao grande salão onde o evento acontecia. Novos olhares sobre mim. O baile de máscaras estava repleto e animado. Os risos e as conversas entoavam em conjunto com a música de fundo, tocada por um quarteto, também vestido a rigor. Nenhum pormenor fora esquecido. Estava a ser transportada no tempo para um qualquer baile veneziano, cheio de intrigas políticas e seduções dissimuladas. Por dentro, o nervosismo aumentou. Encontrava-se mesmo ali. Era real.
Levantei o olhar, analisei em redor e perguntei a mim mesma o que fazia naquele lugar. Não tinha o atrevimento de iniciar conversa com ninguém. O maldito lado tímido a querer comandar… Afastei os pensamentos quando me ofereceram uma taça de Champagne. Quase a bebi de uma só vez. “Calma. Tem calma.”
Aproximava-me de uma mesa alta para me encostar um pouco, quando alguém veio pedir para dançar comigo. Olhei-o com surpresa. Era um homem bem cheiroso, com cabelos pelas orelhas. Parecia jovem, mas não consegui perceber a idade. A máscara é perita em ocultar esse pormenor. Também não precisava de saber. Queria desfrutar daquela experiência.
Aceitei.
Não me falou. Sorria, sem falar. Limitou-se a conduzir-me energicamente naquela valsa e deixei-me ir. Também sorria, mas, no fundo, não estava presente. A minha mente, teimosa, fazia questão de me martirizar com uma sensação de profunda solidão. Estava ali sozinha. Não tinha par. Não tinha com quem partilhar aquela experiência única e imprevista. Era esse facto que vincava a minha solitude. Olhei para outros e via-os felizes e eu sozinha.
Subitamente, o meu olhar descobriu um observador encostado a uma coluna. Não fazia questão de disfarçar. Marcava bem o seu ponto de interesse. Os olhos por baixo da máscara pareciam despir-me. Incomodada, ou não, baixei a guarda e prossegui a dança. Centrei a atenção no meu par e trocámos um sorriso de satisfação. Estava a saber-me tão bem aquela dança.
Todavia, a minha atenção desviou-se novamente para o desconhecido. O seu olhar era hipnótico e, por mais que eu quisesse, não estava a ser tarefa fácil ignorá-lo. Desviei os olhos noutra direcção, para uma das portas abertas para o exterior. Novo rodopio da valsa e não consegui evitar: os olhares cruzaram-se outra vez. Ele, insistia em mirar-me, e eu, por mais que desejasse, não conseguia parar também. Parecíamos agarrados por um fio misteriosamente sedutor.
Altivo, de cabelos castanhos e curtos, salpicados de branco, com uma irrepreensível barba grisalha que lhe cobria apenas o queixo e um bigode de pontas um pouco reviradas, ignorava outros olhares que lhe atiravam. Mostrava claramente a sua escolha.
Olhei para o meu par e compreendi que já nada nos ligava. Estava ali a dançar por dançar. “Estou a imaginar coisas”. Jamais um homem daqueles se poderia interessar por mim daquela maneira. Estava, por certo, a admirar outra mulher. Não poderia ser eu. Observei-o com mais atenção. Confirmei que a devoção estava, sem sombra de dúvidas, em mim. Respirei nervosamente, sem que o meu par percebesse.
E numa passagem da dança por aquela coluna, os olhares colaram-se.
Vestido de negro, com uma camisa de gola que lhe tapava o pescoço, um lenço estrategicamente aconchegado num colete que lhe compunha o corpo bem torneado. Comecei a imaginá-lo debaixo daquele traje elegante. Permanecia resplandecente, mas discreto. Era a autoconfiança que imanava. A máscara preta e prateada que lhe escondia parte do rosto atraía-me sem piedade. De tantos homens que por ali se encontravam, porque estaria a fixar-me naquela criatura?
Dei voltas e revoltas ao som da melodia lindíssima e intemporal e tentei focar-me em com quem estava. Mas a música terminou. O meu par sorriu, beijou-me a mão e perguntou se poderíamos continuar.
E foi então que senti a minha mão a ser tocada, num arrepio que me vestiu, indefesa. Minha nossa, nunca tinha sentido tal estremecimento!
Era ele.
Sem parar de me olhar, agarrou-me e afastou, sem piedade, o homem com quem dançara. E começamos a dançar a nova melodia e, eu, completamente sem reacção, não ofereci resistência. Sentia o coração acelerado junto ao seu peito. Pedia para que ele não se apercebesse. Estava rosada de embaraço. Não conseguia olhá-lo olhos nos olhos. Desarmava-me cada vez que o fazia. O calor da sua mão nas minhas costas inebriava-me. Ele sabia, porque acariciava-me subtilmente com o polegar. Confesso, aqui, perante todos: estava rendida! Não o devia, é tão inapropriado, mas estava rendida. Não dispunha de razão para o justificar. A única coisa que sabia é que não desejava estar noutro lugar. Nunca acreditara em atracção imediata nem em arrebatamento irracional. Era ponderada e não impulsiva. E ali permanecia eu, cada vez com mais vontade de perder-me e não querer saber das consequências.
Não via ninguém. Para mim, o salão encontrava-se vazio. Somente com duas personagens. O resto, desaparecera. Estava irremediavelmente submetida ao deslumbre daquele desconhecido. Quando o conseguia encarar, os seus olhos pareciam brilhar de contentamento e devagar, entre rodopios que faziam agitar com graciosidade a longa saia do vestido, levou-me para fora do salão do baile.
Qual plano divino estaria no meu caminho…
Parámos de dançar e, apertando-me a mão como se tivesse receio que escapasse, guiou-me para outra zona do palacete. Parecia que conhecia muito bem o seu interior. Seria, porventura, o proprietário? Não, não poderia ser. Não tinha coragem de lhe perguntar. Não queria saber. O meu pensamento vagueava noutras vontades. Delírio, mistério, luxúria, sedução levaram-me a não recusar ou questionar o seu encaminhar cativante. Não trocámos palavras. Falávamos de outros modos.
Chegámos a uma escadaria obscura apenas iluminada pelo luar de uma grande janela no patamar, em cima. Cenário que vincava ainda mais o misterioso manto de quem me seduzia e como me encantava. Nada pretendia impedir. Parecia possuída por uma tremenda sede de fazer tudo que ele quisesse. “Louca! Estás louca! Não conheces este homem! Tem juízo!”. De nada valia o desespero do meu lado mais tímido. Não ouvia e não pretendia continuar a ouvi-lo.
Parámos e os seus olhos teimavam em admirar-me. A sua mão tocou-me o rosto, devagar, explorando cada pormenor. Eu, olhava-o, rendida, eufórica, agitada, lasciva, empolgada, arrebatada. Não estava em mim e, no entanto, estava tão em mim.
O polegar forçou a entrada nos lábios e eu acariciei-o com a língua. Tapou-me os olhos com a mão e senti um gemido seu.
— O que está a fazer? — perguntei, quase num sussurro.
Virou-me de repente e, colando-se às minhas costas, respondeu mordiscando-me o pescoço:
— O que deseja que lhe faça…
— Não nos conhecemos. Desconheço quem seja.
— Não importa. Sabemos tão bem o que desejamos que aconteça…
Não resisti e larguei um profundo suspiro. Queria mesmo sentir tudo aquilo. Queria mesmo que não parasse. Apetecia-me tanto mais, mas… não podia. Não devia.
As suas mãos começaram a descer e, depois da pele livre, encontraram os primeiros sinais do corpete. Puxou a fita e a pressão do meu peito ofegante tratou de consumar o resto. Nada consegui fazer contra o seu toque explorador. “Não pares…” dizia para mim. “Continua. Não pares”. A sua respiração ordenava-me junto ao ouvido. Fechei os olhos e não conseguia acreditar que permitisse tal liberdade a um desconhecido. “Faz de mim o que quiseres”, pensei. Leu os meus pensamentos. Abraçou-me pela cintura e, galanteador, deitou-me sobre a passadeira nos degraus da escadaria de pedra. Explorou-me de novo e eu segurei-lhe os cabelos, despenteando-o. Puxei-o para os meus lábios. Não consegui aguentar mais. Tive de o beijar. Foi o primeiro de muitos beijos. Era como se o conhecesse. Tão estranho. Tão deslumbrante. Tão penetrante. Tão impróprio. Tão delirante.
A mão quente, suada de desejo desbravou-me o vestido e nada pude fazer perante a desmedida tirania. Não me preocupou minimamente que alguém nos pudesse surpreender. Para mim, estávamos sozinhos naquele palacete. Era nosso. Somente nosso. Os olhos batalhavam-se num jogo de deleite e prazer. Os lábios não se tocavam. Provocadoramente. Respirei fundo e deixei-o entrar. Cravamos os olhares, de novo, e larguei uma breve lágrima por não saber onde estava: se no infinito ou no paraíso. Ele, tão sedutor, sorriu e respondeu-me com a pele a queimar do seu apetite por mim. Tremeu e eu tremi. Estávamos em sintonia. Queria tanto que o tempo parasse. Não queria sair dali. Quem era aquele homem? A escadaria resistiu ao vigor com que segurava as minhas mãos, cravando-me na pedra fria, mas quente de nós.
— És surpreendente.
Encostámos testas e deixámos sair pequenos risos.
— Amo-te — Deixei escapar, ainda ofegante.
Por entre um sorriso malandro, ele respondeu:
— Para o nosso próximo aniversário de casamento, prometo fazer ainda melhor.
(A autora não segue o acordo ortográfico)