Autor(a):

Isa Silva
Isa Silva
Per ficta resistire

Baile de máscaras

Confesso que jamais tinha feito tal coisa. Nunca tivera coragem. Até hoje. Precisava de algo diferente na minha vida, algo que apimentasse o pacato dia-a-dia. Era o que afirmava a mim própria para conseguir convencer-me. Sentia que tinha tanto para dar e queria muito mais. Desejava realizar inúmeras coisas que me passavam pela cabeça. Chegara àquela idade em que me apetecia aproveitar a vida em pleno. Todavia, o lado tímido, tão dominador, e as vincadas crenças de que desejava libertar-me, levavam-me sempre para outros caminhos. Retraíra-me, eu sei. Oh, se sei. Tenho consciência disso.

Conseguira, finalmente, dar um passo para substanciar a valentia. Nem as minhas amigas do coração sabiam do que iria fazer, ali, naquele final de dia. Guardara segredo. Contar-lhes-ia depois, para ver a reacção. Sei bem qual delas era capaz de me seguir os passos e fazer o mesmo. Aposto em como vou acabar por ser uma inspiração. Que as vou surpreender, ai isso vou! Já as imagino a quererem saber todos os pormenores. Todinhos! Mais tarde, decidirei o que contar e o que manter apenas para mim. Sabe bem ter pequenos e marotos segredos. Todos temos segredos.

À medida que avançava ao encontro do destino, admirava com nervosismo os pingos de chuva que pintalgavam de cor as luzes dominantes da noite. O vidro da janela do carro era a sua magnífica tela. Sentia-me ligeiramente insegura por ir àquela festa sem conhecer ninguém. Contudo, algo me puxava para o fazer. “Uma loucura”, pensei, “Preciso. Preciso de uma loucura”. Era a eterna sensação de caminhar por um constante caminho inacabado que nunca me levaria para fora da minha zona de conforto. Ao mesmo tempo, nascia em mim a vontade de rebentar com essa muralha invisível.

Ajeitei o longo vestido. Adorava-o. Olhei para a mão que tremia, nervosa, e respirei fundo. “Calma. Vai tudo correr bem”. Apercebi-me de que estava a poucos metros da entrada. O coração disparou e senti vontade de regressar a para casa e terminar com tudo! “Estou mesmo doida!”, repetia, tentando convencer a coragem a não avançar.

De nada valeu. Estava determinada.

O carro parou e abriram-me a porta. Olhei para cima e admirei fascinada a fachada daquele palacete. Agora, não tinha hipótese. Era avançar.

Notei o dançar da saia do vestido e o bailar dos brilhos que reflectia. Sabia que tinha feito a escolha perfeita. Sentia-me poderosa e encantadora. Porém, restava um recanto amedrontado, governado pela timidez parva e limitadora. Levantei a cabeça, endireitei as costas e avancei, ignorando-me propositadamente. Aquela minha outra pessoa precisava de se calar. Durante as horas seguintes, iria assumir um outro lado, mais sedutor e oculto. Possuía uma face impenetrável que desejava ser conquistada.

À medida que caminhava para a entrada, o coração batia cada vez mais rápido.

Ajeitei a máscara veneziana de tons prateados e azuis, que disfarçava os olhos, e contemplei melhor o vestido que trajava: azul-turquesa, comprido, rodado e perfeitamente justo, num maravilhoso corpete que salientava a minha pele branca e os recantos misteriosos do peito. Reforçara o batom vermelho-escuro, para realçar os meus lábios, sempre discretos. Naquele dia, até eles estavam resplandecentes. Reconhecia isso.

A temática do baile era clássica e eu sentia-me uma donzela da corte. Na verdade, presumia-me uma rainha. Os olhares centravam-se em mim, fazendo-me acreditar. Não passava despercebida. Gostava da sensação, mas, de igual modo, notava a insegurança num papel com que nunca soubera lidar. Não imaginava que estariam presentes tantas e tantas pessoas. “Quantas não estarão a passar pelos mesmos receios, pelas mesmas inseguranças, pela mesma inquietude?”, questionei, observando tranquilamente do alto da escadaria. Constatei que a maioria era formada por casais e eu, ali, sozinha. “Que disparate fizeste? Devias era estar em casa. Não tens idade para estas iniciativas. Não tens juízo!”. A ansiedade disparou, mas consegui sossegá-la ao admirar em pormenor o local. A entrada do palacete era deslumbrante. Inúmeras vezes passara à porta e nunca imaginara como seria o interior. Verdadeiramente impressionante e mágico. Não contive um sorriso e isso acalmou-me.

Respirei fundo, enchi-me de coragem, levantei um pouco a saia e iniciei a descida, devagar, em direcção ao grande salão onde o evento acontecia. Novos olhares sobre mim. O baile de máscaras estava repleto e animado. Os risos e as conversas entoavam em conjunto com a música de fundo, tocada por um quarteto, também vestido a rigor. Nenhum pormenor fora esquecido. Estava a ser transportada no tempo para um qualquer baile veneziano, cheio de intrigas políticas e seduções dissimuladas. Por dentro, o nervosismo aumentou. Encontrava-se mesmo ali. Era real.

Levantei o olhar, analisei em redor e perguntei a mim mesma o que fazia naquele lugar. Não tinha o atrevimento de iniciar conversa com ninguém. O maldito lado tímido a querer comandar… Afastei os pensamentos quando me ofereceram uma taça de Champagne. Quase a bebi de uma só vez. “Calma. Tem calma.”

Aproximava-me de uma mesa alta para me encostar um pouco, quando alguém veio pedir para dançar comigo. Olhei-o com surpresa. Era um homem bem cheiroso, com cabelos pelas orelhas. Parecia jovem, mas não consegui perceber a idade. A máscara é perita em ocultar esse pormenor. Também não precisava de saber. Queria desfrutar daquela experiência.

Aceitei.

Não me falou. Sorria, sem falar. Limitou-se a conduzir-me energicamente naquela valsa e deixei-me ir. Também sorria, mas, no fundo, não estava presente. A minha mente, teimosa, fazia questão de me martirizar com uma sensação de profunda solidão. Estava ali sozinha. Não tinha par. Não tinha com quem partilhar aquela experiência única e imprevista. Era esse facto que vincava a minha solitude. Olhei para outros e via-os felizes e eu sozinha.

Subitamente, o meu olhar descobriu um observador encostado a uma coluna. Não fazia questão de disfarçar. Marcava bem o seu ponto de interesse. Os olhos por baixo da máscara pareciam despir-me. Incomodada, ou não, baixei a guarda e prossegui a dança. Centrei a atenção no meu par e trocámos um sorriso de satisfação. Estava a saber-me tão bem aquela dança.

Todavia, a minha atenção desviou-se novamente para o desconhecido. O seu olhar era hipnótico e, por mais que eu quisesse, não estava a ser tarefa fácil ignorá-lo. Desviei os olhos noutra direcção, para uma das portas abertas para o exterior. Novo rodopio da valsa e não consegui evitar: os olhares cruzaram-se outra vez. Ele, insistia em mirar-me, e eu, por mais que desejasse, não conseguia parar também. Parecíamos agarrados por um fio misteriosamente sedutor.

Altivo, de cabelos castanhos e curtos, salpicados de branco, com uma irrepreensível barba grisalha que lhe cobria apenas o queixo e um bigode de pontas um pouco reviradas, ignorava outros olhares que lhe atiravam. Mostrava claramente a sua escolha.

Olhei para o meu par e compreendi que já nada nos ligava. Estava ali a dançar por dançar. “Estou a imaginar coisas”. Jamais um homem daqueles se poderia interessar por mim daquela maneira. Estava, por certo, a admirar outra mulher. Não poderia ser eu. Observei-o com mais atenção. Confirmei que a devoção estava, sem sombra de dúvidas, em mim. Respirei nervosamente, sem que o meu par percebesse.

E numa passagem da dança por aquela coluna, os olhares colaram-se.

Vestido de negro, com uma camisa de gola que lhe tapava o pescoço, um lenço estrategicamente aconchegado num colete que lhe compunha o corpo bem torneado. Comecei a imaginá-lo debaixo daquele traje elegante. Permanecia resplandecente, mas discreto. Era a autoconfiança que imanava. A máscara preta e prateada que lhe escondia parte do rosto atraía-me sem piedade. De tantos homens que por ali se encontravam, porque estaria a fixar-me naquela criatura?

Dei voltas e revoltas ao som da melodia lindíssima e intemporal e tentei focar-me em com quem estava. Mas a música terminou. O meu par sorriu, beijou-me a mão e perguntou se poderíamos continuar.

E foi então que senti a minha mão a ser tocada, num arrepio que me vestiu, indefesa. Minha nossa, nunca tinha sentido tal estremecimento!

Era ele.

Sem parar de me olhar, agarrou-me e afastou, sem piedade, o homem com quem dançara. E começamos a dançar a nova melodia e, eu, completamente sem reacção, não ofereci resistência. Sentia o coração acelerado junto ao seu peito. Pedia para que ele não se apercebesse. Estava rosada de embaraço. Não conseguia olhá-lo olhos nos olhos. Desarmava-me cada vez que o fazia. O calor da sua mão nas minhas costas inebriava-me. Ele sabia, porque acariciava-me subtilmente com o polegar. Confesso, aqui, perante todos: estava rendida! Não o devia, é tão inapropriado, mas estava rendida. Não dispunha de razão para o justificar. A única coisa que sabia é que não desejava estar noutro lugar. Nunca acreditara em atracção imediata nem em arrebatamento irracional. Era ponderada e não impulsiva. E ali permanecia eu, cada vez com mais vontade de perder-me e não querer saber das consequências.

Não via ninguém. Para mim, o salão encontrava-se vazio. Somente com duas personagens. O resto, desaparecera. Estava irremediavelmente submetida ao deslumbre daquele desconhecido. Quando o conseguia encarar, os seus olhos pareciam brilhar de contentamento e devagar, entre rodopios que faziam agitar com graciosidade a longa saia do vestido, levou-me para fora do salão do baile.

Qual plano divino estaria no meu caminho…

Parámos de dançar e, apertando-me a mão como se tivesse receio que escapasse, guiou-me para outra zona do palacete. Parecia que conhecia muito bem o seu interior. Seria, porventura, o proprietário? Não, não poderia ser. Não tinha coragem de lhe perguntar. Não queria saber. O meu pensamento vagueava noutras vontades. Delírio, mistério, luxúria, sedução levaram-me a não recusar ou questionar o seu encaminhar cativante. Não trocámos palavras. Falávamos de outros modos.

Chegámos a uma escadaria obscura apenas iluminada pelo luar de uma grande janela no patamar, em cima. Cenário que vincava ainda mais o misterioso manto de quem me seduzia e como me encantava. Nada pretendia impedir. Parecia possuída por uma tremenda sede de fazer tudo que ele quisesse. “Louca! Estás louca! Não conheces este homem! Tem juízo!”. De nada valia o desespero do meu lado mais tímido. Não ouvia e não pretendia continuar a ouvi-lo.

Parámos e os seus olhos teimavam em admirar-me. A sua mão tocou-me o rosto, devagar, explorando cada pormenor. Eu, olhava-o, rendida, eufórica, agitada, lasciva, empolgada, arrebatada. Não estava em mim e, no entanto, estava tão em mim.

O polegar forçou a entrada nos lábios e eu acariciei-o com a língua. Tapou-me os olhos com a mão e senti um gemido seu.

— O que está a fazer? — perguntei, quase num sussurro.

Virou-me de repente e, colando-se às minhas costas, respondeu mordiscando-me o pescoço:

— O que deseja que lhe faça…

— Não nos conhecemos. Desconheço quem seja.

— Não importa. Sabemos tão bem o que desejamos que aconteça…

Não resisti e larguei um profundo suspiro. Queria mesmo sentir tudo aquilo. Queria mesmo que não parasse. Apetecia-me tanto mais, mas… não podia. Não devia.

As suas mãos começaram a descer e, depois da pele livre, encontraram os primeiros sinais do corpete. Puxou a fita e a pressão do meu peito ofegante tratou de consumar o resto. Nada consegui fazer contra o seu toque explorador. “Não pares…” dizia para mim. “Continua. Não pares”. A sua respiração ordenava-me junto ao ouvido. Fechei os olhos e não conseguia acreditar que permitisse tal liberdade a um desconhecido. “Faz de mim o que quiseres”, pensei. Leu os meus pensamentos. Abraçou-me pela cintura e, galanteador, deitou-me sobre a passadeira nos degraus da escadaria de pedra. Explorou-me de novo e eu segurei-lhe os cabelos, despenteando-o. Puxei-o para os meus lábios. Não consegui aguentar mais. Tive de o beijar. Foi o primeiro de muitos beijos. Era como se o conhecesse. Tão estranho. Tão deslumbrante. Tão penetrante. Tão impróprio. Tão delirante.

A mão quente, suada de desejo desbravou-me o vestido e nada pude fazer perante a desmedida tirania. Não me preocupou minimamente que alguém nos pudesse surpreender. Para mim, estávamos sozinhos naquele palacete. Era nosso. Somente nosso. Os olhos batalhavam-se num jogo de deleite e prazer. Os lábios não se tocavam. Provocadoramente. Respirei fundo e deixei-o entrar. Cravamos os olhares, de novo, e larguei uma breve lágrima por não saber onde estava: se no infinito ou no paraíso. Ele, tão sedutor, sorriu e respondeu-me com a pele a queimar do seu apetite por mim. Tremeu e eu tremi. Estávamos em sintonia. Queria tanto que o tempo parasse. Não queria sair dali. Quem era aquele homem? A escadaria resistiu ao vigor com que segurava as minhas mãos, cravando-me na pedra fria, mas quente de nós.

— És surpreendente.

Encostámos testas e deixámos sair pequenos risos.

— Amo-te — Deixei escapar, ainda ofegante.

Por entre um sorriso malandro, ele respondeu:

— Para o nosso próximo aniversário de casamento, prometo fazer ainda melhor.

(A autora não segue o acordo ortográfico)

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AUTOR(A)
Isa Silva
Isa Silva

Nasci no verão de 1966 e desde então a imaginação fez-me companhia no desenhar e no criar histórias. Frequentei a Escola de Artes de António Arroio e a ETIC. Na minha segunda vida (como gosto de salientar) redescobri o desenho, a pintura, a fotografia e a escrita. Conjugo estas paixões com trabalhos em design gráfico e formações de arte e manualidades.

Participei em várias exposições colectivas tanto a nível de desenho como de fotografia e pintura.

Tenho alguns livros publicados e em 2013 fui autora e figurinista teatral com uma peça para infância. Em 2014 estreei-me na arte urbana.

Faço parte dos Urban Sketchers Portugal desde 2010.

www.isasilva.com

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