«A única revolução possível é dentro de nós»
Mahatma Gandhi
Atendi. A voz parecia-me longínqua. Rouca e com falhas. Havia silêncios prolongados como quem necessitasse de recuperar o fôlego, após uma maratona. O que estava prestes a ouvir revelou-se a história de uma corrida impiedosa, que se iniciara na infância de uma mulher, sem previsão de término.
— Disseram-me que podia confiar na senhora. Não aguento mais. Deixe-me dizer tudo de seguida, não sei quando é que a minha voz irá parar. (Silêncio).
— Estou aqui. Escuto. Quando puder, continue — disse, porque nada mais podia dizer, já que me sentia invadida de uma dor, um peso vindo não sei de onde. Apenas a sensação de que a aflição que viajava até mim teria de ser ouvida, socorrida, com a máxima urgência.
— Há um pensamento que me persegue. E agora com a doença é pior. Tenho mais tempo para pensar. Não cuidei da minha filha. Da mais velha. Os outros tiveram mais sorte. Mas a mais velha nasceu quando eu saía da adolescência. Agonia-me a incerteza, mas é possível que ela seja também minha irmã. Não aguento certos cheiros aqui do hospital. O álcool deixa-me tonta. Ele cheirava assim. Eu ficava atordoada e odiava a noite. A minha mãe sabia, mas estava sempre alcoolizada. Os meus irmãos eram mais novos. Viviam amedrontados. Há quinze anos, já eu tinha saído de casa, o meu irmão deu uma tareia no meu pai. Conseguiu enfrentá-lo, estava cheio de força. Talvez das lutas da rua, e das macacadas da sobrevivência. O ódio corroía-nos a todos. Não bastava a fome do corpo, as discussões mantinham-nos de pé e atentos. Passei a viver com o pai dos meus outros filhos. Coitada da mais velha. Descobri que vive da prostituição. Nunca cuidei dela. Só sentia as minhas dores. A do abandono era a maior. (Silêncio). Desculpe… (Silêncio). Não sei se fiquei feliz quando soube que ele morrera. Durante toda a vida só o via à noite. Aliás, só o sentia. Nem sei a cor dos seus olhos. Que ninguém me diga. De dia fugia dele. À noite ele apanhava-me. (Silêncio prolongado).
— Estou aqui. Estou a ouvi-la.
— Resta-me um dia ou dois. E não quero morrer para ele. Ele não me deixa em paz. Povoa-me os pensamentos todos os dias. É como se estivesse à minha espreita. À espreita para me apanhar morta. Não basta o sufoco das feridas da garganta, do peito e do peso do arrependimento sobre a vida que não dei à minha filha, é como se ele me quisesse castigar. (Silêncio prolongado).
— Estou a ouvi-la.
— Nunca contei nada disso ao psicólogo. (Silêncio). O hospital arranjou um psicólogo para me ajudar com a doença e também por estar longe do resto da família. Mas a minha filha está nesta cidade. (Silêncio). Não contei por vergonha e porque não há nada a fazer. Já estou a morrer e ele está morto, a atazanar os meus pensamentos. É como se continuasse a fazer aquilo, sabe? É o que sinto, quero-me livrar dele. Não quero morrer para ele. (Silêncio). O ódio trouxe-me essa doença. A garganta adoeceu. Não podia falar com ninguém. (Silêncio). Acredita que os mortos estão vivos? Disseram-me que a senhora acredita.
— Acredito, sim.
— Eu não quero morrer para ele. O que fazer? O meu tempo acaba.
— Sinto muito. No meio de toda essa dor que a aflige, consegue perceber que ele foi alguém completamente doente? Louco da alma? Que a nossa sociedade abraça também muitas loucuras?
— Se percebo? (Silêncio). Só pode.
— Não quer tentar libertar-se dele? Afastar o pensamento dessas loucuras?
— Não sei fazer isso.
— Percebendo-o louco, pode transformar esse ódio em misericórdia, em compaixão. Consegue perceber o que eu quero dizer?
— Para perdoar? (a voz aumentou de tom).
«O fraco jamais perdoa: o perdão é uma das características do forte.»
Mahatma Gandhi
— Para perdoar? — repetiu, mais calma.
— Se vir o perdão como uma libertação, afastamento, dar espaço entre vós, alívio para si, sim. Consegue perceber o que digo?
— Mas toda a minha vida foi um desastre! Não há nada de útil. Até a minha filha mais velha é uma infeliz. Nunca olhei para ela direito.
— Pode falar com a sua filha. Fale-lhe do seu arrependimento. Fale-lhe o quanto a ama. Você é boa pessoa. Apenas nunca soube disso.
— Eu? E a minha filha?
— Ajude-a a descobrir a boa pessoa que ela também é. Diga-lhe o quanto a ama e que se preocupa. Liberte-se das palavras que engavetou durante anos. Por medo, por dor. Deixe que a morte lhe possa mostrar o caminho da paz.
— Disseram-me que ela vem cá hoje. Uma prima enviou-me um número de telefone. Pedi ao enfermeiro para lhe ligar. (Algum entusiasmo na voz).
— Há minutos da vida que valem ouro. Não se prenda com a ideia de que lhe falta pouco tempo. Use esse tempo e, quem sabe, vocês as duas poderão encontrar um novo sentido para a vida. Paz no coração.
— E a morte?
— A vida continua.
— Pois… E ele?
— A sua paz é sua conquista. Ele não terá acesso. Seguirá o seu próprio caminho.
— Parece que sim. O que me diz… Sinto que sim. Eu vou falar com a minha filha, senhora. Obrigada — disse a soluçar.
«As melhores e mais belas coisas do mundo não podem ser vistas ou tocadas. Elas devem ser sentidas com o coração»
Helen Keller
Dois dias depois, o meu telefone tocou. Um número desconhecido. Atendi. Algum silêncio, até que ouvi:
— A minha mãe faleceu. Conversámos. Dói-me a alma. Ela deu-me este número. Disse-me para lhe ligar. Consegue ajudar-me? Procuro… paz.
— Podemos falar, sim.
«Se não houvesse esperança, não estaríamos lutando»
Autor desconhecido