Risos, gritos, correrias e poeira no ar eram sinal de que a hora do recreio chegara. Naquela pequena escola do 1º ciclo, só havia quatro turmas e, no espaço envolvente, o campo, as crianças corriam desenfreadas atrás da bola. O Martim passava o tempo livre ali, desde que não chovesse, pois a dona Matilde não deixava ninguém molhar-se.
Todos os dias, chegava a casa com as sapatilhas cheias de areia e os joelhos esfolados.
— Ó mãe, foi a recuperar a bola, tive de me atirar ao chão — argumentava, perante o desespero da mãe, que lhe tratava as feridas.
— Não te dói?
— Um bocadinho, mas não faz mal! — respondia, cerrando os olhos para aguentar melhor.
O pai assistia e abanava a cabeça. Não gostava que o filho aparecesse sempre assim. Todos os dias, arranjava um novo ferimento por causa da bola.
Certa vez, foi levado para o hospital, pois fez um golpe tão profundo numa mão, que teve de levar dois pontos. O Martim não se queixou das dores nem do desconforto de ser obrigado a fazer tudo só com uma mão durante uns dias. Pelo menos, tinha lesionado a esquerda. Se fosse a direita, é que seria o cabo dos trabalhos, como dizia o avô. O pai decidiu que era altura de parar com aquela loucura pelo futebol e proibiu-o de jogar durante um mês.
— Não é justo! — protestou, em vão, o Martim. E fechou-se no quarto, onde ninguém o iria ver a chorar.
À noite, quando o foi deitar, a mãe, passando-lhe a mão pelo cabelo, consolou-o:
— O pai fica preocupado contigo, tem medo de que te magoes a sério. Viste o estado em que ficou a tua mão? Tenho a certeza de que te doeu bastante.
— Só um bocadinho…
— Até aqui, magoavas-te nas pernas e nos braços, mas desta vez a mão ficou em muito mau estado.
— Só um bocadinho… Já está quase boa. Eu quero jogar, mãe. Sem o futebol a escola é uma tristeza… — lamentou-se, fazendo beicinho.
A mãe sorriu, aconchegou-o e deu-lhe um beijo na testa.
— Dorme bem.
O Martim demorou a adormecer e, quando finalmente conseguiu, sonhou que voltava a jogar futebol com os amigos.
Mas, na realidade, não jogou, não podia. Nos intervalos, para se entreter, folheava um livro que a mãe lhe dera sobre os ídolos do futebol. Como ainda sabia ler muito pouco, distraía-se a observar as imagens. Sempre ficava menos difícil ver os colegas a jogarem e a divertirem-se.
O mês que o pai decretara passou e o Martim, depois de muitos avisos, lá pôde voltar a jogar. No início, tinha cuidado, tentava evitar as quedas, mas com o passar do tempo, voltou a entregar-se por completo ao jogo e os arranhões e esfoladelas regressaram. De cada vez que o pai o ia esperar, encolhia-se todo, pois receava novo castigo, o que acabou por acontecer, quando um ferimento mais grave fez infeção e demorou a cicatrizar.
Entre os ralhetes do pai e os consolos da mãe, o Martim andava triste. Queria jogar, só pensava nisso.
Um dia, o avô foi buscá-lo à escola. O Martim ficou muito feliz com a surpresa. Ele sabia o que se passava com o neto, por isso, levou-o até ao parque da cidade e sentaram-se a lanchar numa das mesas no meio do arvoredo.
— Sabes, Martim, és igual ao teu pai. Ele também adorava jogar futebol.
— A sério? Então por que não me deixa jogar?
O avô baixou a cabeça, franziu o sobrolho e confessou:
— Eu não o deixava jogar, porque andava sempre a magoar-se. Se reparares, tem as pernas e os braços cheios de cicatrizes.
— Ele tem muitos pelos, não dá para ver bem… — disse o Martim, fazendo uma careta.
O avô riu-se.
— Tens razão, mas garanto-te que tem. Tal como acontece contigo — constatou, fazendo-lhe uma festinha nos braços —, cada cicatriz tem uma história para contar e significa que a dor foi ultrapassada, que andava a divertir-se quando se magoou, que tinha amigos… Cada cicatriz é uma vitória.
O Martim observou os braços e as pernas. Sabia bem como se tinha magoado, esquecera a dor, mas não a diversão, a emoção do jogo, o colega que fintara, o golo que marcara… O avô tinha razão, cada cicatriz guardava uma história.
— Avô, eu quero continuar a jogar. Podes pedir ao pai?
— Acho que encontrei a solução — disse, com um grande sorriso, entregando-lhe um saco.
O pequeno abriu-o e arregalou os olhos quando nele encontrou: joelheiras, cotoveleiras e luvas. Iria parecer um astronauta, só lhe faltava o capacete, mas não se magoaria com tanta facilidade e estava disposto a tudo. Será que assim o pai o deixaria jogar? O Martim mal podia esperar para saber. O avô não duvidava de que seria o começo de uma outra história.