A princípio não havia. Nem a via. Pressentia-a… e esquecia-a…
O primeiro encontro: no curso primário, na aula de biblioteca; depois de algum almoço… (livres nos livros, encantados no colo daquele silêncio sem relógios, esquecíamos de constatar que a aula ou o texto já estavam acabando. Não acabavam – amanhã ou depois recomeçavam…).
O gesto subversivo: definitivo como uma primeira pedrada. Uma colega desconhecida fechando o seu livro deliberadamente antes do final da aula e da história. Recusava-se a terminar. Evitava tudo o que lhe lembrasse o fim – (pois todo fim nos relembra o nada…). Pressentia, enfim, que a morte é o nada petrificado.
Por fim, a minha primeira vez: evitando terminar, minha colega me evidenciava que tudo termina ou se extermina. Aprendi: toda negação corrobora; toda ausência pressupõe uma existência. Apreendi: ao me deparar com a finitude, a partir de agora ela também me pertencia… para sempre. E admiti: o termo “sempre” (quase sempre) se remete a uma quantidade de tempo insuficiente. Portanto desprezível.
Algum tempo depois, a minha próxima lembrança: minha colega desencantada na aula de biblioteca… camuflando a sua calvície precoce… paradoxalmente explicitando aos meus olhos corrompidos a incontestável ausência dos seus cabelos… Em seguida, a sua ausência: eventual, ocasional, permanente. Seu lugar na biblioteca vazio… seu livro sempre presente na estante. Não me atrevi a ler o final… Afinal, a ausência das palavras: … esqueci o seu nome… e o do livro. Concluí: as bibliotecas podem ser eternas – os seres humanos não.
A ausência das lembranças simplifica o resto: perdi parentes e amigos, evitei os enterros; colecionei livros – tornei-me escritor. Para esquecer. Para esconder: cada texto meu é uma tentativa de se encantar o leitor antes que ele se depare com o seu final – talvez assim ele não constate que esta narrativa já está terminando…
Vivo para negar a morte.
Vivia para renegar a morte. Até hoje.
A princípio não houve (ou não vi) nenhuma modificação. E assim seria até o fim. Que eu pressentia… e esquecia…
Afinal, a primeira contradição: agora. Escrevendo este texto em forma de negação: o currículo da minha finitude, o relato de uma constatação.
Hoje, a constatação; ontem, a informação. Gesticulada em forma de ação: um encontro literário com uma bibliotecária desconhecida. Em uma cidadezinha envelhecida. Cuja população decresce. A biblioteca: sem obras, em obras – (em breve será demolida). Evitamos as ruínas, conversamos pelo parque. Ao final, economizamos tempo cortando caminho pelo cemitério. Este cemitério: árvores ao invés de pedras!… uma prorrogação do parque, uma desmistificação de um mistério, uma inversão viva da minha ideia abstrata de cemitério.
Situado no centro do lugarejo, integrava-se naturalmente à previsível harmonia do cotidiano: relembrava a todos nós que a morte é inesquecível – mas também que os mortos são o melhor adubo… Não finalizava.
Fui paralisado por um gesto da minha conhecida. Paramos. Para reparar como tudo parava. Devagar, o mundo divagava: a natureza digeria, a sesta se demorava, o tempo descansava…
Seu gesto continuou. Alisando o tempo. Me convidando a contemplar um espaço vazio entre duas sepulturas. Uma materialização geográfica do nada. Um vácuo verde. Vago. Vagando… A sua vaga: evacuada para lhe pertencer. O seu canto: um intervalo de tempo cavado no espaço; uma cova, um colo e um consolo; um silêncio atemporal que amanhã ou depois a absorverá. Uma antecipação em forma de chão. Este chão: sedimentação de uma livre escolha, continuação de uma tradição local. Ponto de referência, previsão de um futuro: todos os dias, a caminho da biblioteca, ela revê o seu fim.
Optou por viver morrendo ali. Sem viajar nem escapar; sem fugir nem pressentir. Sorriu…
Me movi. Nos despedimos. Ela permaneceu; eu me ausentei. Desapareci: fui esquecido, sumi.
Voltei para casa e para a minha lembrança crônica: … a aula de biblioteca. Inalterada, imaculada: me faz até esquecer que a cidadezinha de onde partira já está se extinguindo – bem como a sua biblioteca… e a sua bibliotecária…
E decido terminar este texto antes que a minha calvície tardia devaste definitivamente a minha cabeça grisalha. Meu primeiro texto sobre a minha finitude. Creio que irei batizá-lo de “crônica”: é o gênero que – por tanto excluir, por tanto ausentar e omitir, por ser tão poroso quanto o esquecimento – talvez melhor sintetize esta tentativa de descrevê-la… Pois se existir é admitir a própria finitude, escrever é escolher um nome próprio que a descreva. Reescrevendo-a.
Talvez tenha sido isto o que a minha colega tenha tentado descrever ao desaparecer. Talvez não terminar esteja mais próximo do infinito por ainda estar incompleto; talvez o estado natural das coisas, dos homens e dos textos seja o parcialmente em branco. Talvez a pedra já contenha a sua perda.
Não temo mais as frases excessivamente longas, sem pontuação. E, tentando evitar um gesto finalizador, acabo evitando o encontro e o encanto de um ponto final


