A composição escrita da criança de dez anos, mesmo que genial, não é igual ao texto do escritor. A diferença reside no facto de a primeira figura escrever ao natural, com muita ocorrência da oralidade, e a segunda redigir com base num código literário assimilado ao longo de anos ou décadas.
O oral tem um papel instrumental para a vivência do dia a dia, por isso, baseia-se em elementos simples e repetitivos, frequentemente auxiliado por expressões faciais ou certa gestualidade. A literatura é alavancada pela intenção do autor, a proposta de colocar alma dentro da escrita, sublimar o que primitivamente é utilitário e transformar a palavra em arte. A literatura é o que se conta e a forma como se conta. E a forma conta muito sobre o processo de aprendizagem do autor.
Primeiro, para produzir texto e, depois, para aprimorar a redação, o escritor necessita de uma disciplina incrementadora de novas faculdades. Como o atleta que treina diariamente para alcançar determinado feito fisiológico, também a pessoa das letras deve disciplinar-se para produzir feitos literários e aumentar as suas técnicas de escrita. É possível fazê-lo sem disciplina? Sim, mas com dificuldades acrescidas. A disciplina não pode ser entendida como algo castrador, um muro de restrições que limita as liberdades. Pelo contrário, a autodisciplina é puro ato da vontade interior, o poder de intervir em si mesmo para ampliar determinadas valências ou atingir objetivos complexos. Numa época em que as solicitações externas são torrenciais e a praga dos ecrãs é o inferno da distração, a disciplina é um bálsamo libertador, porque permite a independência criadora. Sem disciplina, qualquer pretendente a escritor é títere nas mãos de estímulos persistentes e fúteis, que reduzem o produtor a consumidor e o agente criativo a “agido” degustativo.
Todas as artes, e não há dúvidas de que a literatura tem assento de destaque entre elas, são fruto da dedicação, de intenso labor, de entrega. O cálculo é simples. Vamos supor que a alma é equivalente a tempo. Retirando o tempo de sono, a nossa alma tem uma totalidade diária de dezasseis horas. A questão é saber quanto estarei disposto a dar para cumprir-me enquanto escritor. Vamos ao velho dízimo bíblico, dez por cento da minha alma para a escrita, ou seja, uma hora e trinta e seis minutos por dia. No entanto, sejamos exigentes, como poderei ser bom escritor sem ler, ler muito, ler do bom e em quantidade? Tenho de entregar a alma também para esse processo de aquisição de conhecimento literário, que passa por compreender os grandes monstros.
Stephen King datilografava no barracão do jardim, Gonçalo M. Tavares diz compor trancado no escritório, sem qualquer meio online ativo, para dar exemplo de dois escritores prolíferos e de qualidade. Ambos entregam tempo e alma para crescerem como executantes de arte da escrita e, por fim, doarem ao leitor o honesto esforço colocado em narrar com intenção e efeito. A escrita literária não é natural, é uma linguagem que sublima a palavra cansada do quotidiano.