Autor(a):

Patrícia Lameida
Patrícia Lameida

Dos ovos

Em deambulações em torno do conceito “não”(no contexto do mote para este número da PALAVRAR), dei com a mente engatada numa recordação que se tornou recorrente: a icónica cena dos ovos (protagonizada por Júlia Roberts). Compreendo que a associação de ideias seja forçada para todos os que não passaram pela década de noventa com um coração adolescente no peito, pelo que passo a explicar.

Viviam-se anos de idealismo e branqueamento da realidade e as comédias românticas eram sucessos de venda instantânea. Nomes como Meg Ryan, Tom Hanks, Júlia Roberts e Richard Gere aceleravam emoções e preenchiam salas de cinema. Foram também os anos da minha adolescência. Arquivo esta época como sofrida, numa nota agridoce, tocando-me ao sentimento o drama, qualquer que fosse o palco, real ou espalmado num ecrã.

Foi arrancada desta época a memória dos ovos, que inspira este texto. Com ela veio a vontade de rever o filme “Noiva em Fuga”, que percebi saber de cor, desde conjuntos de falas à banda sonora, até aos famosos ovos. Estes interpõem-se entre namoricos disfarçados de discórdia, quando o Richard (depois de viverem tanto tempo comigo, posso tratar os favoritos pelo primeiro nome) pergunta a Júlia de que forma prefere os seus ovos. Pode parecer inocente, mas para uma personagem que muda a sua eleição à velocidade com que troca de companheiro, foi a pergunta mais profunda de todo o filme. E Júlia não sabe responder.

Com a letra de “Blue Eyes Blue”, sussurrada pela voz de Eric Clapton, a servir de banda sonora a esta dissertação, pergunto-me, tal como se perguntou Júlia, o que sei eu sobre ovos favoritos? A minha filha mais velha gosta deles mexidos, o rapaz prefere perfeitamente cozidos. Para a bebé, qualquer coisa cozinhada é bem-vinda e o marido adora o conceito do “ovo perfeito” do Blumenthal. E eu? Enquanto choco uma resposta, ocorrem-me imagens de inocência. Eu gostava de ovos estrelados, de bordas queimadas e gema líquida, saídos da frigideira materna para cima de um pedaço de pão torrado pelo gás. Agora, não sei se serão esses os ovos prediletos. São os ovos da minha juventude, mas desde então experimentei muitas e diferentes formas de cozinhar clara e gema.

Coloridas são as imagens que me ocorrem quando exploro esta questão entre os arquivos da memória: a banalidade suave de uma omelete saboreada num hotel em férias; a nota salgada associada à substância camuflada numa tortilha sob o sol de Barcelona; o toque ácido de um ovo recheado enquanto se trocam cusquices num qualquer coquetel; o prazer quase infantil de misturá-los com batata frita quando aprecio uns deliciosos ovos rotos, acompanhados por uma cerveja gelada e uma conversa mais brejeira; a sensação de conforto e sólida tradição que um ovo escocês comanda em quem o saboreia; a delicada complexidade que o paladar experimenta com um benedict; e o que dizer de uns deliciosos revueltos, que despertam recordações de Sevilha antes da sesta, sempre com uma doce sangria ao alcance.

Nenhuma das recordações invocada esclarece o dilema em causa, e assim chego ao ponto que me atormenta — e que nem a melodia do Eric consegue serenar — de que forma prefiro os meus ovos? Tal como a confusa Júlia, não sei responder. A solução encenada na película com um banquete de variedades não me parece reprodutível (a Júlia teria uma capoeira, com certeza, pois não seria barato o experimento), pelo que me preparo para carregar a questão comigo.

Nasce da banalidade uma quase aventura: ver o alimento oval sob uma nova perspetiva, descobrir a cada ovo testado parte da solução para o enigma, apreciar a jornada de descoberta até encontrar a resposta… de que ovos gosto? E de que ovos não gosto? Afinal, viver é tudo menos monotonia.

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Patrícia Lameida
Patrícia Lameida

Patrícia Lameida cresceu entre livros, aventuras e novos mundos. Escreveu, desde cedo, poemas e pequenas histórias que esqueceu com o tempo. A vida divergiu do mundo das letras durante a sua formação e entrada no mercado de trabalho. Não tardou a procurar novamente esta paixão mantendo um blogue de crítica literária durante vários anos e escrevendo pequenos textos, alguns deles publicados. Retoma a escrita sob a tutela de Analita Alves dos Santos, sendo a sua participação na antologia «Não vão os lobos voltar» o primeiro passo desta aventura.

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