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laura gonçalves
Laura Gonçalves

Ecos de uma Nova Ética

Uma ideia assoma à mente, insidiosa. Ignorá-la parece a solução mais simples, mas a intrusão torna-se um incómodo constante. É como um murmúrio de frequência desconhecida, difícil de sintonizar, mas impossível de calar. O volume cresce, a impertinência transforma-se em necessidade, até que não resta alternativa senão agarrá-la e destrinçá-la. E é na escrita que se encontra a ferramenta para harmonizar este tumulto. Assim, diante da página em branco, apercebi-me de que o tema desta nova edição da revista Palavrar – moral sonora – ressoava em mim nessa amplitude: enigmática e persistente. A composição era inevitável, contudo faltava-me o pentagrama, a clave e o andamento. Senti a necessidade de revisitar o significado da palavra moral, pois frequentemente a semântica encerra acordes ignotos. A minha intuição valeu-me este texto. Encontrei a voz dos sons como reflexão acerca da moral do mundo. Mas, antes de partirmos nesse solfejar, relembro também ao leitor a sua definição, na tentativa de sintonizarmos mentes.    

«moral

(mo·ral)

nome feminino

  1. Conjunto dos princípios e valores de conduta do homem.
  2. Bons costumes.
  3. Conjunto de regras e princípios que regem determinado grupo.
  4. [Filosofia] Tratado sobre o bem e o mal.
  5. Suscetibilidade no sentir e no proceder.»

In dicionário Priberam online

Se é verdade que o impacto da música na experiência humana já me ocupara o pensamento, pouco tempo dediquei a escutar o som, num sentido mais lato (barulhos, conversas, monólogos e músicas) e a sua evocação moral. De que modo a moralidade do nosso tempo se insinua nessas vibrações? Ou, tal como Tavares defende em Breves Notas sobre a Música, de que forma elas conduzem o mundo moralmente?    

Da minha janela, ouço o ruído incessante dos motores de automóveis, buzinas e sirenes. As máquinas escavadoras ferozes trabalham a terra e os aviões rasgam o céu. Aqui dentro, o som da guerra e os noticiários perpétuos catapultam da televisão. O vizinho grita: “golooo!”. Desbloqueio o telemóvel e sou inundada pelas músicas súbitas e repetitivas do Tiktok. Consumo uma dezena de sonoridades, menos de 30 segundos, no Instagram. Com estas ondas, componho uma melodia de compasso acelerado, presto, prestíssimo. O ritmo do mundo pede-me inquietação, como se me tivesse esquecido de algo urgente. É a ética da repetição, do ruído social e da urgência do lucro. Nesta partitura, falta a doçura do chilreio e a voracidade da chuva e do vento. Falta o silêncio.

Abro o Spotify. O algoritmo bem afinado mostra-me pop, R&B e indie. No entanto, é a dissonância entre estes géneros e a música de outros tempos que apelava à prece, à contemplação e à quietude; é a dissonância entre compositores modernos e antigos, tecelões de pontes em direção ao divino, que me remete para as características da música de fundo atual: diversa, “jazziana”, ritmada e mundana. Os metrónomos pré-industriais – regulares, constantes e lentos – foram substituídos por outros até sucumbirem à inutilidade. Não quero com isto reduzir a ética contemporânea ao “antigamente é que era bom”. Seria rasgar as pautas passadas que me trouxeram aqui; seria esfregar o sangue das pedras da calçada derramado por aqueles que lutaram por uma sociedade mais justa, plural e inclusiva e, acima de tudo, livre. Nem tão pouco desejo menosprezar o valor de todas as formas de expressão, pois renuncio à categorização cultural dicotómica “música digna” ou “música não digna”, que serve o propósito de estratificação moral, intelectual ou social dos indivíduos. Contudo, não posso deixar de reconhecer que o corte das amarras teve um preço: perdemos estrutura e desígnio enquanto humanidade.      A universalidade da moral sonora desapareceu e, no seu lugar, um código profundamente pessoal e subjetivo surgiu. Cada indivíduo encontra uma “moralidade” nas experiências sonoras que o tocam, seja numa canção de funk ou num canto gregoriano.

Todos estes sons ao meu redor falam-me de um caos que precede uma nova ordem. Reproduzem uma ópera monumental assíncrona que, a certo momento, desaguará num coro magistral. Se soubermos escutar a História e a Natureza, estou convicta de que uma inovadora moral sonora surgirá para nos aproximar da paz e harmonia.    

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laura gonçalves
Laura Gonçalves

Laura Elisa Faria Gonçalves nasceu em 1992, no Jardim da Serra, uma pequena localidade na Ilha da Madeira. Após a sua formação em Medicina e especialização em Anestesiologia, regressou à leitura e à escrita, dois interesses há muito adormecidos. Agora escreve contos para concursos literários nacionais, está a preparar o seu primeiro livro de fantasia e tem contas no Instagram Tiktok dedicadas a essas duas áreas. Vive na Madeira com a família.”

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