Autor(a):

Luís Aguiar
Resistentia Poetica

Gaza 2025

Eis-me aqui, neste século de luz atómica,

cuja brancura é mais pútrida que o bolor do tempo.

Eis-me aqui a vasculhar o sossego da minha filha,

silêncio pétreo, cinza, cinzento, que vasculha os portos,

os rascos lugares onde o mar não canta,

Mar Morto que apenas conclama o desespero das aves.

Eis-me aqui a procurar a escassa sombra

de uma justiça que persegue o espesso grito, a altercação,

a marca de uma raça manchada pela ausente paz.

 

Correm os cavalos negros e, enquanto correm,

eis-me aqui, fodido, a atravessar a neve,

a cruzar a água salgada,

a sentir a dor como se fosse uma cruz inverosímil,

enquanto o mundo aperfeiçoa as vicissitudes da vida,

e embarcam nos comboios exaustos

aqueles que um dia arrastaram as raízes

das árvores que albergaram a chuva nos ramos.

 

Eis-me aqui, testemunha muda, surda,

que procura uma nova religião,

um novo pedal para a bicicleta herdada

do avô que morreu com um cancro na garganta,

bicicleta antiga que não granjeia porto nem pátria,

mas que insiste em girar o aro,

a roda até ao alcatrão — o caminho está ali, ali,

próximo dessa pátria desmesurada que tem o nome de Israel.

 

 

 

 

Eis-me aqui, branquíssimo, a disfarçar o negro da rosa,

a descrever a força do ouro nos olhos das viúvas,

enquanto os relâmpagos rebentam nas veias,

e o tempo, a merda deste tempo, desenha no mapa

da vida uma nova raça e que é fogo e cinza,

que franqueia o voo de um pequeno pássaro

que se perde no vazio, na luta sem tréguas, no cântico árido,

onde só a pedra estabelece o peso do chão,

enquanto as crianças morrem à fome ou nos escombros

desenhados por bombas de papel.

 

E assim seguimos — sem porto e sem mapa,

na travessia de um século sem esperança.

Eis-me aqui, eis-me, eis-me aqui arruinado,

sem um cêntimo ou um escudo para oferecer

à morte, para desgastar a luz que desagua na sombra,

e colher o raro vento que é hoje sangue e brancura,

sal escuríssimo na promessa infinda da liberdade.

Eis-me aqui, tolhido pela amargura de um povo,

verso palestino, indecifrável, desaparecido do mundo.

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AUTOR(A)
Luís Aguiar

Luís Aguiar nasceu em Oliveira de Azeméis, em 1979. É mestre em Línguas e Relações Empresariais pela Universidade de Aveiro. Algumas das suas obras fotográficas figuram na capa de livros de poesia. É membro do PEN Clube Português.
Em abril de 2024, coordenou a antologia São Cravos – 50 Anos de Abril, 100 Poemas, publicada pela Editora Labirinto, no âmbito das comemorações do cinquentenário da Revolução dos Cravos.
Entre 2000 e 2025, publicou dezoito livros de poesia. Tem, igualmente, poemas dispersos por diversas antologias e revistas literárias. Alguns dos seus trabalhos poéticos foram traduzidos para castelhano, italiano e inglês.
Foi distinguido com dezenas de prémios literários, entre os quais se destacam: o Prémio de Poesia Judith Teixeira (2024 e 2016); o Prémio Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage (2022 e 2016); o Prémio Literário Cidade de Almada (2021); o Prémio Literário Afonso Lopes Vieira (2006); e o Premio del Concorso Internazionale di Poesia Castello di Duino – Trieste, Itália (2005).

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