Eis-me aqui, neste século de luz atómica,
cuja brancura é mais pútrida que o bolor do tempo.
Eis-me aqui a vasculhar o sossego da minha filha,
silêncio pétreo, cinza, cinzento, que vasculha os portos,
os rascos lugares onde o mar não canta,
Mar Morto que apenas conclama o desespero das aves.
Eis-me aqui a procurar a escassa sombra
de uma justiça que persegue o espesso grito, a altercação,
a marca de uma raça manchada pela ausente paz.
Correm os cavalos negros e, enquanto correm,
eis-me aqui, fodido, a atravessar a neve,
a cruzar a água salgada,
a sentir a dor como se fosse uma cruz inverosímil,
enquanto o mundo aperfeiçoa as vicissitudes da vida,
e embarcam nos comboios exaustos
aqueles que um dia arrastaram as raízes
das árvores que albergaram a chuva nos ramos.
Eis-me aqui, testemunha muda, surda,
que procura uma nova religião,
um novo pedal para a bicicleta herdada
do avô que morreu com um cancro na garganta,
bicicleta antiga que não granjeia porto nem pátria,
mas que insiste em girar o aro,
a roda até ao alcatrão — o caminho está ali, ali,
próximo dessa pátria desmesurada que tem o nome de Israel.
Eis-me aqui, branquíssimo, a disfarçar o negro da rosa,
a descrever a força do ouro nos olhos das viúvas,
enquanto os relâmpagos rebentam nas veias,
e o tempo, a merda deste tempo, desenha no mapa
da vida uma nova raça e que é fogo e cinza,
que franqueia o voo de um pequeno pássaro
que se perde no vazio, na luta sem tréguas, no cântico árido,
onde só a pedra estabelece o peso do chão,
enquanto as crianças morrem à fome ou nos escombros
desenhados por bombas de papel.
E assim seguimos — sem porto e sem mapa,
na travessia de um século sem esperança.
Eis-me aqui, eis-me, eis-me aqui arruinado,
sem um cêntimo ou um escudo para oferecer
à morte, para desgastar a luz que desagua na sombra,
e colher o raro vento que é hoje sangue e brancura,
sal escuríssimo na promessa infinda da liberdade.
Eis-me aqui, tolhido pela amargura de um povo,
verso palestino, indecifrável, desaparecido do mundo.